O IMPERADOR INVISÍVEL

Para os passantes acostumados a paisagem, aquilo apenas era um canteiro comum, embaixo do velho viaduto que era, a cada governo, caiado à pecha de reforma, servindo apenas de abrigo dos costumeiros indigentes evitados por todos.

Mas, para os dois que ali estavam invisíveis para o mundo além da grama e do cercado, sentados e se saciando da parca refeição e servindo-se da tóxica bebida, ali era sua Ilha de Santa Helena, o exílio imperial imposto ao mais famoso conquistador francês. E um deles, em seu desvario, não era ninguém menos que o próprio imperador.

Quanto ao outro, chamemos o de James. Sendo um Napoleão e aquela leira impedida sua ilha, o único outro ocupante não seria outro senão sua sentinela. Aquele que por uma daquelas irracionais formalidades dos ingleses era obrigado a certificar-se da presença do Imperador e lançar reportes para a Coroa Inglesa. Sua única missão na vida era enxergar Napoleão.

De dentro da cabana enjambrada num dos pilares do viaduto, não se sabia como Napoleão comprovava sua existência para seu vigia. Às vezes respondia com um grito, às vezes mostrava a cara, e às vezes, enfadado, mostrava a bunda.

Mas naquele dia em particular Napoleão havia convidado James para o jantar. Queria conversar até o sono chegar, ou a alucinação, o que viesse antes.

- Vamos, meu caro. Coma. Beba. Não sairemos daqui nunca, mesmo. – Napoleão diz.

- Não dê ordens para mim. Você é o preso aqui. O derrotado. Eu, o vencedor. Você não e mais nada. Somos iguais.

- Iguais?

- Sim. Apenas dois homens perdidos no mundo. Longe de casa. Com suas memórias.

- Hahaha... Minhas memórias de casa são de um império. As suas são no máximo de um bolo.

- Somos iguais, sim. Dois bichos abandonados. Duas garrafas velhas jogadas fora. Não importa se uma era de vinho caro e outra de pinga barata.

- James. E por acaso você tem certeza de que estou aqui? Tem me visto já há tanto tempo que talvez me veja em todo lugar. Me ver não é um acontecimento mais para você... É um tique nervoso. Eu não estou mais aqui. Eu já fugi. Você está delirando comigo.

- Sabe com o que eu sonho Napo? Quem aparece em meus delírios?

- Quem? Se for uma mulher, me empreste.

- Os anônimos. Todos os sem face e invisíveis do mundo. Eles me seguem como fantasmas numa peça de Shakespeare, dizendo coisas. E eles repetem: Somos iguais!

- Novamente essa igualdade...

- Sim. É como se todos eles estivessem no mundo e não estivessem. Ver o mundo e não são vistos. É como viver a história de outras pessoas.

- Eles têm razão. Você está na minha história e não está. Você goza da liberdade, mas não pode aproveitá-la enquanto eu estiver vivo. Quando eu estiver em minha cripta dos Invalides, ninguém se lembrará do seu nome. Bons observadores esses inominados. Os convidaria para jantar, mas muitos fantasmas à mesa dão azar. Além de assustar a criadagem.

- Só vejo um fantasma a minha frente.

- Você está delirando, James. Você é o fantasma dessa ilha. Eu sou mais que real. Eu sou imperial. Posso ser um louco pensando ser Napoleão, mas nenhum louco pensará em ser você.

- Olhe ali! – James se sobressalta. – Todos os insignificantes da história. Todos os mutilados pelo anonimato e o esquecimento do mundo. Eles estão acenando para mim!

- Controle-se, James. Pare com essas visões. Ordeno que não veja mais ninguém, além de mim. Você só existe para me ver. Você é minha posteridade. Os ingleses acharam que era muito uma ilha e me exilaram na sua retina. Troquei um continente por um par de pupilas. Está contente? Essa é sua significância, James. Se esfregar os olhos, me apaga da História. Tome mais uma taça, enquanto ainda podemos.

E, pouco depois, o sono veio. Bem depois do delírio.

FIM

David Leite
Enviado por David Leite em 26/04/2021
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