Nossas Diferenças

Quando meus olhos se voltavam a mim, à minha existência, a quem eu verdadeiramente era, um frio percorria todo o meu corpo, tocava minha alma, acelerava meu coração e libertava uma enxurrada de pensamentos ansiosos, inseguros, descrentes quanto ao amanhã, céticos quanto ao futuro de realizações e felicidades que muitos outros na mesma idade que eu asseguravam convictos de que viveriam. Eu era diferente. E ser diferente num mundo de padrões é quase um ato suicida, ou pior, é como se você estivesse cometendo um crime imperdoável, que no seu julgamento definirá quem você é, as escolhas perversas que fará, os comportamentos inomináveis que escandalizarão todos aqueles que conviverem com você. E por isso sua sentença será uma eternidade de solidão e tristeza. Mas eles acham que você escolhe ser diferente, que você considera mais cômodo – e até mais fácil – se desviar do caminho que todos seguem como o gado que é levado ao abatedouro. Mas ser diferente é inerente à nossa vontade. Sejamos francos. Quem em sã consciência escolheria ser diferente num mundo no qual as pessoas vociferam o que é normal e onde tantas outras perseguem esse ideal de perfeição sem se darem conta da vida que desperdiçam e dos males que causam em si mesmas? Quem escolheria ser diferente num mundo no qual dirigem a você armas e pontapés por dizer que não é como a maioria? Seria insano “escolher”. A diferença não é escolhida. Ela existe e é vivida, queiramos ou não.

Eu tentei. Ninguém pode dizer que não, essa acusação eu nunca vou poder aceitar, apesar de também confessar que fui ignorante comigo mesmo, que foi cruel contra mim mesmo. Mas eu tentei mudar, me adequar, me encaixar, ser “normal” como diziam que eu deveria ser. Mas o que acontece quando você tenta encaixar num molde errado um objeto que a ele não pertence? De tanto forçar o encaixe, pode quebrar, arranhar, deixar feio aquilo que era bonito sendo o que era. Assim é nas nossas vidas, ou pelos é assim que deveríamos pensar sobre ela. Se não nos encaixamos em determinados padrões, se não coubermos em determinados espaços, não temos escolha se não renunciá-los, rejeitá-los, afastar-nos deles para que nossa beleza singular não desapareça, para que a nossa essência não seja equivocadamente violada. De tanto tentar me encaixar, eu quase quebrei. Ao meio. Sem possibilidade de correção, de reconstrução, de reviver. Fiquei na beira do precipício, literalmente, tudo porque eu tentava me forçar a coisas que não me agradavam, que não me atraiam, que não concordavam com quem eu era, que não me permitiam abrir minhas próprias asas e sobrevoar esse universo de oportunidades que está aí para que possamos aproveitá-lo.

De tanto sangrar, percebendo que minha existência não era melhor nem pior que a de ninguém, que eu também tinha o direito de acordar de manhã e abrir um sorriso animado pela chance de viver por mais vinte e quatro horas, que eu resolvi abraçar minha diferença, aquilo que me tornava diferente de tantos outros e que, por isso mesmo, também me tornava singular dentre a multidão. Quando tentamos nos encaixar precisamos vestir uniformes que não nos cabem, calçar sapatos que não nos servem, caminhar sobre pedras que não nos trazem firmeza, perdemos quem somos e deixamos de sermos únicos para sermos apenas mais um. Por muito tempo me rejeitei. Considerei-me um abominável, um sujo, alguém indigno de ao menos olhar para o rosto das pessoas, de ao menos me aproximar delas e sentir aquele bom e velho toque humano. Aquilo me adoecia. Não o que eu era, o que eu tinha a viver, a diferença que pulsava dentro de mim. Mas, sim, o ódio que eu semeava contra mim mesmo só por não ser como os outros. Mas se eu não me amasse, se eu não cuidasse de mim mesmo, se eu não me acolhesse, se eu não protegesse o único que passaria a vida inteira comigo mesmo, quem faria essas coisas? Ainda que fizessem, não seria suficiente, porque eu estaria preso a um corpo que rejeitava, que detestava, que mutilava. Então eu me abracei com todas as minhas particularidades. Sim, eu era diferente, era humanamente diferente e decidi me amar.

Foi quando decidi me amar que as olheiras desapareceram, que o cansaço foi embora, que aquele sentimento de desesperança e incredulidade quanto ao futuro deram lugar à certeza de dias grandiosos que valeriam a pena, que trariam motivos para sorrir, que fariam as lágrimas se converterem em sorrisos e coloriria cada experiência da vasta vida que eu tinha a experimentar. Foi quando decidi me amar que também consegui ensinar outras pessoas, as que mais próximas a mim estavam, a me amarem também. É uma pena que nem todos tenham essa sorte, é uma pena que tanta gente se mantenha num mundinho minúsculo de possibilidades e não entendem que a existência é complexa demais para nossas pequenas opiniões. Mas eu consegui. Consegui fazer aqueles que eu mais amava compreenderem que eu era diferente deles, que eu caminharia de uma forma diferente da deles, mas que continuava sendo aquela pessoa disposta a amá-los, respeitá-los e acompanhá-los nas conquistas que o universo poderia nos ofertar.

Mas, foi quando decidi me amar, que o inesperado aconteceu.

Eu era apaixonado por aquele garoto de franjinhas que conhecera na quinta série. Naquela época eu não entendia, mas de todas as maneiras possíveis eu tentava me aproximar, tentava me fazer notar, tentava chamar sua atenção para o nerd de óculos grossos que um dia fui. Raras foram as vezes que conversamos, mas sempre fora uma experiência eletrizante, como se tivesse ganhado um prêmio por muitos cobiçado só por ter falado um “oi” com aquele garoto de franjinhas que me fazia me sentir estranho. Na oitava série, quando já conseguia entender minha diferença, apesar de relutar constantemente contra aquilo, ele voltou à minha vida depois de ter se mudado de cidade. Estava mais bonito do que antes, mais alto, as franjinhas ainda existiam, mas seu rosto ganhava o típico aspecto de adolescente. Apenas uma coisa me incomodou quando o vi pela primeira vez depois de três anos. Seus olhos antes irradiantes estavam apagados, tensos, fundos, como se tivera que contemplar visões que o perturbavam insistentemente. Eu o conhecia muito bem, pelo menos conhecia seus tracejos e seus gestos, não era o mesmo de antes, não tinha mais a mesma alegria de outrora.

— Seja bem-vindo outra vez — ao final da aula, engolindo minha covardia e forçando uma coragem que poderia ser perigosa, falei sem pretensão de continuar o diálogo, apenas como um gesto cortês de alguém que um dia teve a chance de montar a maquete de ciências com ele.

— Obrigado — ele respondeu contido, como se soubesse que no fundo eu queria conversar, mas mostrando que o desejo não era recíproco.

Segui meu caminho. Estava ansioso, agitado, algo dentro de mim fazia meu coração ter vontade de saltar pela boca. O que estava acontecendo? Eu ainda estava apaixonado por aquele garoto de franjinhas? Mas que pergunta era aquela? É claro que ainda estava, é claro que algo nele ainda me chamava a atenção, afinal, durante aqueles três anos não houvera nem um dia sequer que eu não me lembrasse do seu rosto, da sua voz e que não sonhasse sem qualquer esperança pelo dia que o veria outra vez e diria o que sentia.

Motivado pelos passos que ouvia atrás de mim, virei o pescoço.

Confesso que pensei que ia morrer por insuficiência cardíaca.

— Acho que agora somos vizinhos — forçando um sorriso que julguei ser apenas como simpatia, o garoto da outrora quinta série me fez ter certeza de que era ele mesmo —. Quero dizer... Vi você indo para a escola de manhã, nossas casas são uma de frente para a outra.

Bem que eu soubera que o vizinho de antes havia partido há poucos dias e que os novos moradores estavam prestes a chegar. Estava no meu quarto, ensaiando o violão, quando ouvi um movimento do outro lado da rua no dia anterior, mas estava ocupado demais tentando tirar uma música em especial para sair lá fora. Curiosamente venci minha impulsividade por descobertas e deixei que os desconhecidos se acomodassem sem meus olhos intrometidos. Se soubesse de quem se tratava...

— Mas essa é uma notícia incrível! — depois que falei fiquei pensando se as palavras não soaram alegres demais, suspeitas demais —. Quero dizer... Seja bem-vindo duas vezes...

— Obrigado... — ele sorriu de novo se aproximando de mim, sincronizando seus passos com os meus —. Posso perguntar uma coisa?

— É claro — naquele momento o céu límpido ficou escuro, pensei que teria um derrame no meio da rua, com todos vendo, com o garoto da quinta série saindo correndo, assustado pelo nerd esquisitão.

— Como é viver sem um pai?

Meu pai havia morrido quando eu ainda era uma criança de nove anos. Fora por isso que meu crush, como dizem atualmente, voltara para nossa boa e velha cidade. Seu pai morrera num acidente terrível e desde então sua vida ficara uma confusão de sentimentos. Eu expliquei que sobrevivi, contei sobre como era participar das homenagens de dia dos pais e não ter o meu presente. Minha mãe sempre estivera em seu lugar, até mesmo meu avô fizera questão de estar numa das apresentações, mas no fundo não era a mesma coisa, pai, mãe e um amor verdadeiro são coisas que não dá para substituir. Prometi que a dor passaria, que daria lugar a uma saudade intensa, mas que esta seria aliviada pelas lembranças dos bons e inesquecíveis momentos. Apertamos as mãos num gesto de cumprimento. E seguimos nossos caminhos da melhor e mais segura forma possível.

Mas as coisas mudaram drasticamente. No terceiro ano do ensino médio, cansado de tudo o que já tinha vivido, cansado de tentar me moldar a formatos que não me serviam, eu me abri para as pessoas mais próximas. Na minha casa o drama foi grande, minha mãe insinuou que a culpa fora dela por não ter conseguido ocupar o espaço que meu pai deixara vazio. Foi difícil, mas ela pôde entender que não tinha nada a ver com a presença ou a ausência de um pai, com a sua capacidade de ocupar o lugar dele ou seu injustamente chamado “fracasso”. Não tinha a ver com nada daquilo. Tinha a ver apenas com quem eu era e com o caminho que eu tinha a seguir. Mas o garoto da quinta série se afastou abruptamente.

Quando declarei quem eu era já sabia que algumas pessoas se afastariam, que outras se aproximariam, que ia doer, machucar, mas que as pessoas verdadeiras, aquelas que eu merecia ter na minha vida e que seriam dignas de compartilharem momentos esplêndidos ao meu lado, permaneceriam comigo sem condições algumas, enquanto que as pessoas desnecessárias, mesmo que eu as amasse muito, partiriam, levariam com elas um pouco de mim, mas me deixariam livre para ser quem eu era sem o medo de seus julgamentos.

Mas o afastamento de Igor foi duro, foi sufocante, foi opressor, foi tudo o que eu jamais desejei passar. Não era apenas apaixonado por ele, semeava algo maior do que paixão, algo que crescera ao longo do ensino médio, que nos tornara mais íntimos ao ponto de compartilharmos segredos, ao ponto de eu me sentir seguro o bastante para revelar o maior de todos os meus mistérios. Ele não aguentou. Passava por mim pelos corredores como se não me conhecesse, como se nunca tivesse precisado de mim em madrugadas frias para desabafar o quanto seu pai fazia falta e o quanto queria ter a chance de contar a ele sobre suas dores e seus medos. Embora por dentro aquilo me fizesse sangrar, por fora eu continuava alegre, sorridente, mostrando que também me sentia leve por finalmente conseguir ser autêntico, ser real, ser eu mesmo.

O problema é que sempre teremos no mundo aqueles que temem irracionalmente a diferença e que tentam impor sua verdade questionável. Sempre haverá aqueles que não conseguem encontrar o próprio caminho para a felicidade, o verdadeiro caminho – não o que acham ser verdadeiro porque alguém lhes dissera – e acabam odiando aqueles que de fato conseguem ser felizes aceitando a vida como ela é, a própria existência como ela se mostra. Estava indo para casa, sozinho, quando ouvi ciclistas se aproximando. Não me importei, poderiam ser apenas pessoas normais em um passeio normal com seus filhos normais. Para mim ser normal é ser sensato, é ser tolerante, é ser respeitador, é entender a verdade do outro sem necessariamente se desfazer da sua. Aquelas pessoas não eram normais. Arrastaram-me para uma casa abandonada a pouca distância da escola. Não pude ver seus rostos, mas as vozes não me eram estranhas, já havia ouvido-as em outras ocasiões me chamando de adjetivos cruéis, dirigindo a mim frases que não desejo que nem meu maior inimigo seja forçado a ouvi-las. Bateram em mim enquanto me chamavam de pecador. Chutaram meu corpo enquanto me condenavam ao fogo do inferno. Cuspiram sobre mim enquanto confessavam o tamanho da vergonha que sentiam pela minha existência. Mas tudo aquilo falava mais deles do que de mim mesmo, falava o quanto os verdadeiros pecadores, os verdadeiros abomináveis eram eles com suas atitudes perversas e doentias. Que mal eu lhes fizera? Talvez lhes causei o incômodo de não aceitarem suas próprias diferenças. Talvez não fossem como eu, exatamente como eu, mas com certeza tinham suas próprias singularidades, mas não as aceitavam como aceitei as minhas, tinham medo, receio, insegurança em serem eles mesmos.

Interromperam as agressões quando ouviram sirenes ecoarem dentro da construção abandonada.

Estava cansado demais para abrir os olhos e contemplar o rosto do “bom samaritano” que não olhou para as minhas diferenças, colocou-me em seus ombros e me levou para casa.

Acordei cheio de curativos pelo corpo com uma mulher angustiada derramando suas lágrimas.

— Mãe... — falei sussurrando, ainda assim sorrindo.

— Era isso o que eu temia... — ela confessou.

— A verdadeira felicidade tem o seu preço — aquilo era injusto, é injusto alguém apanhar feito um cachorro apenas por ser negro, apenas por ser mulher, apenas por ser pobre ou apenas por ser gay ou apenas por ser tudo isso de uma vez só. Mas precisei confortar minha mãe.

— Eu amo você — beijou minha testa dolorida —. Tem alguém querendo falar com você...

Ela saiu.

A visita entrou.

Eu não soube o que dizer. Pela primeira vez ficara sem palavras para expressar minha surpresa, nem que fosse da forma desajeitada que eu costumeiramente demonstrava. Senti o coração acelerar. Mas ainda assim me contive. Era por pena? Por misericórdia? Ou por culpa? Eu não sabia quais eram os seus motivos, mas também não sabia se queria ouvi-los.

— Felipe? — ele falou inseguro, aproximando-se aos poucos, ficando em pé me observando.

Tentei me levantar, mas meu corpo doía demais, parecia pesado demais.

Ele se aproximou mais.

Ofereceu seu corpo para que eu me apoiasse.

Finalmente pude me sentar.

— Se quiser... — bati no colchão três vezes, mas não olhei em seus olhos. Não sabia como estava minha aparência. Mas não era apenas por isso. Estava chateado, magoado, confuso quanto ao que sentia em relação ao garoto da quinta série que tão de repente voltara à minha vida, tão de repente se tornara meu melhor amigo e tão de repente se afastara de mim.

— Eu quero... — sentou-se. Senti o calor que emanava de seu corpo. Podia sentir seus olhos sobre mim. Mas não o encarei —. Eu vi o que aconteceu. Vi quando te levaram para aquela casa. Estavam em cinco. Sei quem são e podemos denunciá-los.

Balancei a cabeça. Não sabia se queria fazer aquilo.

— Estava em desvantagem, mesmo que insistisse não conseguiria detê-los. Então usei a sirene do meu pai. Sempre a levo comigo, é tudo o que me restou dele — com o canto dos olhos vi a sirene em suas mãos, a famosa sirene que ele nunca largava. Seu pai era policial. Morrera com o carro capotando numa perseguição contra bandidos perigosos —. Ele salvou sua vida.

Precisava ser agradecido.

Aqueles intolerantes estavam dispostos a me matar.

Mas ele me salvou.

Ele.

— Obrigado... — encarei seus olhos azulados, com sinceridade e afinco —. Não sei o que poderia ter acontecido.

— Se eu não tivesse me afastado. Se ainda voltássemos para casa juntos. Talvez isso não tivesse acontecido.

— Você tem os seus motivos — tornei a encarar meus dedos sobre as pernas, rememorando os insultos, as agressões, ainda assim contente por ser quem eu era.

— Temos em comum muito mais do que você pensa — ele pegou em minha mão, com a outra guiou meu rosto para si —. Eu tinha medo de confessar, tinha medo de confessar até para mim mesmo. Mas nós somos iguais. Acho que é por isso que nos identificamos tanto, não sei... Mas nós somos iguais — uma lágrima fina saltou em seu rosto —. Eu tinha medo. Preciso que me perdoe... Tive medo de não ter a chance de falar isso, mas, você é especial, de uma forma que ninguém mais é...

As palavras? Elas simplesmente sumiram no momento mais inoportuno possível.

Então ele tocou meu rosto enquanto sorria.

Aproximamo-nos lentamente.

E pudemos sentir nossos lábios se tocarem suavemente.

Por alguns minutos mantivemos nossas testas unidas enquanto nossos dedos se tocavam como se precisassem saber que aquilo era real.

E era.

É real.

Enquanto escrevo esse texto ele está deitado ao meu lado, adormecido, parece se sentir seguro, protegido, como eu me sinto por tê-lo comigo e por ser quem eu sou.

As diferenças sempre existirão, fazem parte de quem somos e nós precisamos aceitar cada pedacinho da nossa singular e única existência.

(Escrito por @Amilton.Jnior)