[Conto] A Vida é Cheia de Possibilidades
O amor oferece mil e uma experiências àqueles que a ele se entregam, mas apenas àqueles que se entregam de verdade, que se rendem com devoção, que submetem-se aos seus encantos e às suas dores. Sim. O amor também pode ofertar dor. Aliás, qualquer experiência que nos tire de nossa zona de conforto, por mais querida e cobiçada que seja, é capaz de ofertar certo desconforto, mesmo que sutil. O amor é impossível de prever, de projetar, de idealizar com a certeza de que cada detalhe será concretizado. Podemos sonhar com um amor, com uma história de amor, com uma relação cercada e regada pelo amor, mas se é que posso dar um conselho, não deveríamos, jamais, idealizar como queremos vivê-lo. Ele só surpreende quem aceita ser surpreendido por ele, ele só fascina quem nele confia.
Era uma garota ingênua ainda, tímida como sempre foi, insegura ao tomar iniciativas para o que queria viver. Com muito custo, depois da melhor amiga ter insistindo por todo um semestre, concordou em participar do acampamento que marcaria o final do ensino médio e o começo de uma nova etapa na vida de todos aqueles adolescentes cheios de projetos, de energia, de esperança e de hormônios, claro. No último dia quase desistiu, quase voltou a se esconder e a se privar das coisas que fariam a diferença em sua existência, mas precisava agradecer pela amiga que tinha, graças a ela teve a chance de desfrutar de uma vida que valesse a pena.
Estava nervosa, como era de se esperar. Nunca se dava bem naqueles encontros sociais, cheios de tanta gente com tantos assuntos, uns falando sobre os outros, uns brincando com os outros, uns conversando mais alto que os outros. Gostava da discrição. E fora assim que passara a adolescência e terminara o ensino médio. Poucos conheciam o som da sua voz e se espantavam sempre que era obrigada a apresentar algum trabalho. Ela os odiava, se não valessem nota nunca faria aqueles trabalhos, nunca seria notada, nunca seria confrontada com o ensurdecedor silêncio de uma sala cheia de olhos curiosos voltados sobre ela. A última apresentação ficou para a história.
Gostava de um garoto. Mas não era qualquer garoto. Sabe aqueles alunos que se destacam por serem inteligentes e descolados ao mesmo tempo? Que conseguem ser tão elegantes e sedutores ao ponto de atraírem olhares de uma só vez? Acho que vocês chamam de “os populares”. Ela gostava de um popular. Ele era educado, gentil com todos que se aproximassem, inclusive com ela. Em um dia inesquecível ele a ajudou a pegar os livros que a professora pediu, andaram pelos corredores em silêncio, mal se olharam, mas a simples companhia ficaria para sempre ecoando sobre os pensamentos dela.
Mas voltando à falada última apresentação, ela falou sobre os marcos do feminismo e as tendências da luta feminista, mas falou com o coração, mostrando que conhecia o tema, que fizera um minucioso trabalho de pesquisa, que era completamente apaixonada por aquilo. Foi a melhor apresentação que fizera. Os aplausos foram merecidos e os reconhecimentos enalteceram a sua capacidade de falar tão compreensivelmente de um tema tão complexo que levantava tantas discussões. Mas foi aquele garoto com seu sorriso espontâneo que fez todo o esforço valer a pena. Ele a elogiou. Disse que finalmente aprendera sobre conceitos que sempre tivera dificuldade. Alisando os cabelos que caíam sobre a testa, mantendo o sorriso que dirigia a todos, ele assegurou que a procuraria mesmo com o fim da escola, tinha certeza de que poderia aprender muito com ela.
Ficou radiante. O garoto “mais tudo” da escola finalmente lhe dera a atenção que queria, mas ficou por aquilo mesmo, em menos de um mês as aulas acabariam e aquela experiência, bem como todos os seus sonhos, seriam aprisionados num passado que nunca mais se repetiria.
Mas talvez fosse a sua insegurança falando alto, a sua descrença numa vida maravilhosa. Não deveria ter acreditado tanto em sua incapacidade de desfrutar de histórias grandiosas, de se alegrar vendo seus sonhos se realizarem, não deveria ter se sabotado tanto quanto fez, não deveria ter dado ouvidos àquelas vozes que a desanimavam, que transformavam sua beleza em feiura, que faziam do seu brilho algo fosco e sem atrativos. Ela era especial, mas não sabia disso.
Ao chegar no acampamento junto de Carolina, sua amiga, aquela garota tímida olhou todos ao redor, sentiu uma vontade enorme de correr por entre a mata, esconder-se atrás das árvores e pedir para que os pais fossem buscá-la. Mas respirou fundo. Forçou um sorriso. Resolveu suportar o atravessar da noite e o raiar do sol, quando finalmente poderia voltar para casa e seguir sua vida de anonimatos e incertezas.
Todos pareciam felizes, alegres, como se sentissem que seus desejos eram atendidos, como se suas vidas fossem simplesmente perfeitas e incríveis, dignas de serem invejadas e imitadas. Eles apenas eram livres. Ou parcialmente livres. Deveriam ter suas limitações, suas preocupações, seus próprios medos, mas conseguiram a proeza de colocar tudo isso debaixo do braço, aprenderam a conviver com esses obstáculos e seguiram em frente na busca pela solução de cada insegurança, de cada temor, de cada sentimento de inferioridade. Pelo menos a maioria parecia conseguir. Mas ela, a garota tímida, sentia que sua vida seria vazia, sem motivos para ser vivida com tanta plenitude, com tanta vontade, com tanta alegria.
Ao longe viu o garoto popular. Aquele que parecia tão leve, tão despreocupado, tão seguro, tão certo de que o futuro apenas começava trazendo seu melhor. Estava rodeado de seus amigos, dando risada, contando piadas e se divertindo com as que ouvia. Percebeu que algumas meninas se aproximavam, às vezes o tocavam, repousavam em seu ombro, eram todas lindas, tão carismáticas quanto ele, merecedoras de tê-lo como alguém que as ajudaria na conquista da felicidade. Apesar de tímida, de insegura, de responsável pela grande parte de seus receios, a garota invisível era romântica, acreditava no amor, além disso, desejava ter a chance de vivê-lo, de ter alguém ao seu lado, que caminhasse com ela, que crescesse com ela, que construísse o futuro com ela. Gostava do garoto popular, chegara a escrever poesias inspirada nele, sonhando com o dia que perderia a vergonha, se aproximaria, criaria uma amizade e, enfim, revelaria a veracidade de seus sentimentos. Mas nunca confiou na própria capacidade, não deveria ter sonhos tão distantes da sua realidade.
Ficou distante da multidão.
Com o auxílio da claridade da fogueira ao redor da qual muitos se reuniam, lia o livro que levara, saboreava as palavras, rendia-se ao universo de imaginação do autor, refugiava-se naquele mundo paralelo que parecia tão incrível, tão atrativo, tão melhor do que o real.
Mas só parecia melhor. O mundo real sempre será superior porque é nele que podemos realizar as fantasias que surgem quando usamos a criatividade para imaginar o que poderia ser, o que poderia acontecer, o que, de fato, podemos viver. Um pensador disse certa vez que se podemos sonhar, então podemos realizar, aquela garota tímida demorou para descobrir essa verdade, mas descobriu, e é isso o que importa. É claro que quanto mais cedo melhor, mais tempo estará disponível, por outro lado talvez tudo aconteça na hora exata, quando melhor estamos preparados para saborear as delícias da vida.
— Quando é verdadeiro, o amor nos faz esperar até o último instante — alguém se aproximou, a sombra durou alguns breves segundos, logo as páginas voltaram a ser iluminados e uma presença se colocou ao seu lado —. Acho que teria feito a mesma escolha.
Surpresa, incapaz de esconder os olhos brilhantes, a garota tímida levou a atenção ao dono da voz que tão bem conhecia, que há um mês tivera a sorte de ouvir tão pertinho e que naquele momento tinha o prazer de aproveitar mais um pouco daquela mesma sorte.
— Conhece o livro? — sem esconder o espanto, a garota tímida perguntou.
— É tão inacreditável assim? — sorridente, divertindo-se com a reação da colega, o garoto questionou.
— Não... Claro que não... É só que... Você não tem cara de quem gosta de romances — respondeu aos poucos, sentia o nervosismo aumentar, o rosto avermelhar, não acreditava que estava conversando com o garoto popular, não acreditava que estava bancando a amedrontada perto dele.
— E qual seria a cara de alguém que gosta de romances? — mostrando que intencionava ficar ali por mais algum tempo, o garoto popular se ajeitou sobre o tronco de árvore que servia de banco, esticou os braços ao lado do corpo e passou a observar o ambiente esperando pela resposta.
— Não saberia dizer muito bem, mas você tem cara de que prefere filmes a livros... Peço desculpa se estiver julgando mal, mas, fiquei surpresa que pudesse ter lido um livro desses.
— A Escolha. É um bom livro, não acha? Nicholas Sparks é aquele tipo de autor que todos que querem falar de amor deveriam ler. O que fazer ao ver o amor da sua vida em estado vegetativo? É um dilema, não acha?
— Acho que envolve uma decisão difícil de se tomar. Qualquer que fosse tomada seria por amor, mas uma delas talvez não o fizesse tão feliz.
— Não... Não faria... E eu tomei uma decisão... — o garoto popular tornou a encarar sua ouvinte —. Convencê-la a se aproximar mais um pouco, essa é uma noite para diversão, não que leitura não seja divertido, mas também é importante interagir com outras pessoas, não acha?
— Acho que prefiro ficar com os livros — a garota tímida sorriu ansiosa.
— Por que eu imaginava que essa seria a sua resposta?
— Porque é assim que sempre fui? — interrogou.
—Assim como?
— Até parece que não sabe...
— Se você não disser quem você é, como poderei defini-la?
— Ana... Ana Olmedo —desconversou.
— Que descuido o meu... Henrique... Henrique Oliveira — fingiu que não se conheciam, que não sabiam como se chamavam, que nunca tivessem se visto antes. Estendeu a mão —. Vem sempre aqui?
— É a primeira vez — mesmo que nervosa, aceitou a mão do colega, entrou na brincadeira.
— Então não se importará se eu apresentá-la a alguns bons amigos, não é?
— Não penso que seja uma boa ideia...
— Ah! Por favor, não me negue a companhia de uma dama tão bela — o elogio fora sincero, ela não sabia, mas aos olhos dele, ela era encantadora. O segredo era mútuo. Nunca tiveram a coragem de revelar o que sentiam, até perceberem que o tempo acabava e que o futuro talvez os separassem para sempre.
— Dama tão bela? — Ana retraiu a mão, desviou o olhar, repetiu com ar de ironia.
— Não se acha bela?
Silêncio.
— Eu não queria ofendê-la.
Silêncio.
— Me desculpe, mas...
— Não... Não precisa se desculpar. Queria saber quem eu era como se não soubesse, eu sou a esquisita da sala, a garota que não consegue falar com ninguém com naturalidade, aquela que com seu silêncio distancia a todos.
—Isso é o que você diz para si mesma — Henrique declarou chamando de volta a atenção da colega —. Por que faz isso com você?
Sem resposta.
Ana não sabia o que responder.
Não sabia por que era tão rígida consigo mesma, por que cobrava tanto de si mesma, por que desacreditava de si mesma.
— Eu sempre prestei atenção em você, sempre, desde que foi apresentada como a aluna nova... — depois de tanto tempo, o garoto popular anunciava o que sentia, o que pensava, o que escondia —. Fiquei com vergonha, sei lá, não sabia como falar com você, mas... A verdade é que eu queria me aproximar, queria conhecê-la, queria falar o quanto te achava interessante, o quanto queria ouvir o que tinha a dizer, o quanto desejava conhecê-la...
— Mas sempre agi como uma estranha...
— Não... Isso não tem sentido... Tinha medo de assustá-la, afugentá-la, se você soubesse o quanto me atraía... Não simplesmente porque é bonita — abaixou os olhos envergonhado, sorriu desconcertado, a fala escapara antes do momento —. É isso... Eu sempre te achei bonita, mas mais que isso, sempre te achei diferente das outras pessoas, tem um brilho que é só seu, apenas precisa aprender a vê-lo...
Não tinha reação. Não sabia quais palavras articular. Então começou a chorar cheia de emoção.
— Algum problema? — inseguro, temendo ter ido longe demais, Henrique se aproximou aos poucos, ensaiou tocar em seu rosto até finalmente conseguir.
Ana simplesmente o encarou. Abriu um sorriso leve, despreocupado, um que nunca antes conseguira abrir. As palavras faltaram. Mas a coragem inesperada a impulsionou para o beijo que virava a página em sua história e entregava em suas mãos a certeza de que seus sonhos também seriam realizados, afinal, ela pôde sonhá-los.
— Essa garota tímida, tão insegura, que pensava que ninguém a notava, era eu, minha querida — acariciei os cabelos da minha neta enquanto ela repousava em meu colo, cheia de incertezas, de confusões, parecendo a mesma garota que um dia eu fui —. Mas seu avô me notou, sempre me notou e ainda hoje me nota, mesmo depois de tantos anos, mesmo depois de tantas décadas, ele me olha com aquele mesmo olhar de quando éramos apenas dois jovens inseguros. A vida é assim, minha querida, cheia de possibilidades, a gente só tem que aprender a vê-las.
Não sei se minhas palavras terão um efeito imediato, mas sei que ecoará em seus pensamentos, sei que alimentará nela aquela pontadinha de esperança que todos precisamos para começar a acreditar em nós mesmos, na nossa própria história e no nosso direito de sermos livres de cordas com as quais, em tantos momentos, nós mesmos nos amarramos. A vida é cheia de possibilidades. A gente só tem que aprender a vê-las.
(Escrito por @Amilton.Jnior)