O CASARÃO DE CERRO LARGO

I CAPÍTULO: O PEÃO

Era um dos pequenos animais que costumavam andar por aquelas bandas, vindos de regiões próximas da fazenda , na esperança de encontrar algum alimento mais substancial do que aquele que lhe oferecia uma mata rasteira, já meio devastada por obra humana, sem nenhum respeito pela existência deles. O sol produzia uma quase bruma que deixava úmidas e pegajosas as folhas, as pedras, os telhados há poucas horas castigados por uma chuva tropical. Nada denunciava a presença de um habitante naquele casarão outrora próspero e de uma imponência quase inconveniente para aqueles confins próximos do fim do mundo. O animal, uma pequena capivara, parava a pequenos intervalos,dando uma erguida no focinho curto na tentativa de detectar algum perigo. Entretanto, subitamente, feito um raio, salta sobre ela um cão, vindo não sei de onde,e num abrir e fechar de boca sacode a pobre sem piedade. Mais alguns instantes e lá está a capivara jogada ao chão , sem vida, e o cão, após um rápido farejar, ,afasta-se atravessando uma pequena ponte,a qual serve de passagem sobre o riacho que corta o terreno em diagonal.

Mas lá do alto, através de pequena janela retangular, alguém testemunhara a tragédia silenciosa e inevitável do pequeno ser. Era Joana, no seu habitual retiro de todas as tardes. Após o almoço, , ela subia com cadenciada preguiça a escada em direção ao sótão. Não havia nada que a demovesse dessa idéia, nem as reclamações de sua mãe, nem os risinhos de sua irmã, nem nada que se pudesse inventar para atraí-la em outra direção. Era seu sossego, dizia impaciente, e aos poucos todos foram se acostumando com aquela aparente excentricidade juvenil. Até o dia em que chegou Martiniano. Foi o divisor de águas. Uma tempestade imprevista. Ninguém sabia muito bem quem ele era. Só se tinha conhecimento que ele viera das bandas da fronteira, talvez Santana do Livramento. Joana o viu entrar, através da janela, e teve um sobressalto. Era como se um raio a tivesse atingido e ela estremeceu num arrepio de assombração. Tentou manter a habitual indiferença, mas não conseguiu. Irritou-se, fez um esforço para pensar em qualquer coisa, não conseguiu. Então rendeu-se ao incômodo, só que o fez com raiva. Estava declarada guerra ao intruso. Na manhã seguinte, apenas o sol nascera, lá estava Joana saindo em direção ao quintal. Mal ajeitara os cabelos, puxados para trás em um coque , onde mechas de fios negros caíam em desalinho. Sua saia de algodão pesado, azul escura, era protegida por um avental de pano rústico. A blusa branca era graciosa, com rendas e nervuras, mangas levemente franzidas e uma fita que arrematava num laço junto ao peito. A pele bronzeada contrastava com o alvo tecido, mostrando o colo onde brilhava discreta a corrente de ouro muito fino e, preso a ela, um pingente em forma de coração. Parou, como de costume, junto ao poço, a cabeça erguida, os olhos perscrutando a folhagem como se procurasse alguma coisa. Os pássaros faziam a algazarra habitual daquelas manhãs de primavera e ela respirou fundo o ar puro e fresco, erguendo os braços vagarosa e espreguiçando-se lentamente. Mas não pôde deixar de permitir que aquela imagem , presa a sua retina, viesse interromper a calma de uma nova manhã , aparentemente igual a tantas outras que ela já vivera até então. Um arrepio lhe percorreu a espinha. Resmungou furiosa e saiu pisando forte em direção ao varal, onde recolheu mecanicamente uma peça de roupa esquecida, cheirou-a e fez uma careta. A umidade deixara um odor desagradável e ela, como para se certificar , cheirou novamente a camisola, enfiando o nariz bem fundo . Nesse exato momento ouve um ruído de passos e , ainda com a cara meio encoberta pelo tecido, ergue os olhos franzindo a testa. Soltou-a lentamente como para ganhar tempo, mas foi despertada por um "bom-dia, moça",e lá estava ele, bem à sua frente,olhando-a com curiosidade. Joana custou um pouco a responder, mas ele , sem demonstrar perturbação, já passava por ela em direção a casa.

-Não tem ninguém acordado, disse,a moça, voltando à sua habitual espontaneidade.

Martiniano , então, olhou para ela diretamente. Um novo arrepio veio lembrá-la de que estava frente a frente com o inimigo. Tentou disfarçar a ansiedade passando a mão pela nuca devagar, respirando fundo, mas novamente a presteza dele tirou-a daquele embaraço.

-Não tem pressa,falou, eu volto depois.

E antes que ela pudesse responder, continuou:

- Tem muito que fazer por aqui, moça. Faz tempo que seu pai morreu? Ela ficava cada vez mais inquieta e foi gaguejando que respondeu:

- Tem dois anos mais ou menos...

- É, precisava de mais uns braços para colocar isso em ordem...Sua mãe não podia arrumar algum peão pelas redondezas?

Joana só queria se livrar do incômodo que sentia. Movimentando o corpo jogou-se em direção a casa e concluiu:

- Depois a minha mãe resolve.

Martiniano percebendo o mal-estar , sorriu da inibição da garota, colocou novamente o chapéu e tomou o rumo do galpão. Para ele também, nada mais seria como antes . Estava selado o seu destino . A armadilha tinha feito sua vítima. O grande olho piscara malicioso e o laço atara seu nó muito firme.Martiniano estava na teia , enredado até o mais profundo de seu ser.

Passaram-se duas semanas e nada parecia ter mudado na rotina dos habitantes da casa. Joana continuava com suas tardes no sótão, Dona Fermina na sua incansável lida de fogão, mesa, intermináveis bacias de roupa ensaboada, a missa de domingo na vila poeirenta e tantas outras preocupações em que se resumia sua vida de dona de casa do interior. A esperta e mexeriqueira Lucinha, com seus doze anos, um pouco mirrada para a idade, era um verdadeiro furacão de saias e pés descalços. Não havia canto onde já não enfiara seu nariz meio chato e seus olhos muito escuros refletiam uma índole maliciosa demais para tão pouca idade. Sorrateira, sabia de tudo que se passava, até no mais recôndito dos esconderijos da alma dos outros. Era um dom que lhe possibilitava intuir, como um cão farejador, aquilo que tentassem disfarçar e ocultar da curiosidade alheia. Logo deu-se conta do amor de Joana e Martinano. E foi numa noite de verão recém iniciando, com aqueles calores infernais de fim de ano que deu-se afinal o encontro dos apaixonados. Como não podia deixar de ser, testemunhado pela garota em cima de uma árvore de cinamomo. Joana havia combinado encontrar-se com ele naquele lugar, após anoitecer.Dizendo para a mãe que ia se deitar foi rumo ao quarto, fechou a porta e saiu pela janela. Estava muito ansiosa e feliz, aquela alegria do corpo jovem que se entorpece de sensações e desejos. Quando ela chegou , Martiniano já estava a sua espera. Um pouco desajeitado aproximou-se, mas os dois, já impacientes pela longa espera, abraçaram-se sem cerimônia . Entre beijos murmuravam endoidecidos e aos poucos os corpos foram se esfregando e encontrando delícias e prazeres jamais suspeitados. A blusa branca foi descendo pelos ombros, enquanto o rapaz mergulhava desatinado naquelas carnes tenras. Ela então abriu as pernas para o mistério do sexo, e se entregou ao mais antigo dos prazeres da humanidade. E assim seguiram-se muitos dias de encontros e deitadas... nas gramas , suspiros, gemidos e a presença de Lucinha encarapitada na frondosa árvore.

O fim do ano chegou ,as festas foram preparadas. Dona Fermina já desconfiava de algo, coisas que não escapam à experiência de uma mulher vivida, principalmente com relação a uma filha. Na verdade ,instintivamente sabia, só desejava não se ocupar do assunto, como quem prepara uma estratégia. Quando conhecera seu marido, tinha sido diferente. Na forma, nos arranjos externos, mas a essência era a mesma. Rituais para preservar interesses, casamentos arranjados, às vezes muito inconvenientes, especialmente para as mulheres, mas outras ,e nem tão poucas vezes assim, acabavam por resolver os problemas do corpo e do espírito, e eram casamentos que se estendiam até a morte dos envolvidos, deixavam filhos, e serviam ao propósito de organizar o rebanho de modo que as sociedades se cristalizavam , a produção crescia, o mundo girava, enfim, sem grandes euforias, mas eficiente. Não existem fórmulas perfeitas, enfim,, para que nos enquadremos numa arquitetura existencial, raciocinava a senhora, com sua forma simplificada de entender essas coisas tão elementares na vida das pessoas. E Firmina, no que lhe permitia seu conhecimento de mundo, já sabia o que era inevitável. Por isso, resolveu ter uma conversa com a filha.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 04/11/2007
Reeditado em 14/04/2008
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