Por um fio
Meus passos eram calmos, ritmados e favoreciam a contemplação, o respiro. Um passeio tão agradável e ameno, capaz de trazer à memória as histórias contadas pela minha avó. Eu caminhava sozinha, aspirando o ar fresco e aproveitando o mormaço na pele, que corava e sentia a saúde a roçar-lhe preguiçosamente. Eram dez horas da manhã. Eu andava e lembrava dos meus onze anos de idade, do cheiro do café feito às quatro da tarde e das histórias cujo cenário era, na maioria das vezes, o mesmo: Uma floresta fresca e misteriosa como aquela em que eu me encontrava, bendito presente verde trazido pela vida adulta, bem no meio do Rio de Janeiro.
A floresta da Tijuca era um dos meus locais prediletos para começar o final de semana recarregada e cheia de energia. O papo de que a natureza nos renova e alivia dos pesos diários sobre os ombros não é só papo. Após a semana inteira entre papéis e poeiras, uma trilha e uma vista privilegiada da cidade eram o suficiente para limpar as artérias, ideias, pensamentos, porões e apreensões de qualquer pessoa.
Eu já retornava após alguns minutos no mirante e pensava na vida. ouvindo a trilha sonora do parque, feita de murmúrios, ruídos, águas imponentes e segredos trocados entre os pássaros, quando senti um calor diferente percorrer o meu corpo. Os ruídos já conhecidos foram entrecortados por um denso e abafado arrastar-se que parecia vir em minha direção, embora escondido entre folhas e raízes aparentes.
Parei por alguns segundos para observar se não havia algum animal por entre as árvores, ou alguém com dificuldades de locomoção e precisando de ajuda. Não vi nada que se aproximasse do que eu imaginei, e o ruído, cada vez mais próximo, fez-me decidir apressar o passo, em uma quase corrida pelo trecho da trilha já quase vazia.
As lembranças de minha avó e de suas histórias me fizeram sentir medo. Um medo sem cabimento, mas capaz de me fazer acelerar mais ainda e sair correndo de fato. Em pleno 2050, com a segurança da cidade feita basicamente por drones eficientes, não havia o que pudesse ser suficiente para tirar a paz de um passeio inocente de alguém que havia trabalhado tanto e durante toda a semana. O trabalho, a burocracia, as dificuldades impostas pelas pessoas, isso sim, jamais acabaria.
Arfando, eu corria, ao passo que um filme passava na minha memória. Eu, atenta e sentada no curto carpete do quarto amarelo e arejado da velha casa, cercada por gibis, enquanto minha avó costurava e contava:
Seu avô era sargento da PM há doze anos. A polícia cuidava com afinco da segurança da população da cidade desde que houve a confirmação dos ataques. Esses ataques aconteciam sem hora e lugar marcado. Às vezes, um corpo era encontrado em plena luz do dia, mesmo em área urbana e movimentada. Outras vezes, em área mais afastada dos centros, alguém era atacado, e apesar de socorrido, morria horas depois, assim que dava entrada no hospital. As únicas coisas em comum entre esses casos era o fato de os ataques não terem rosto e a suave cicatriz que era deixada no pescoço das vítimas. Nunca nenhum suspeito foi preso. Seu avô sentiu-se mal durante uma dessas operações. Os bandidos já não eram a maior preocupação. O medo era esse desconhecido. Eu estava em casa quando recebi por telefone o aviso de que ele havia sido hospitalizado. Hospital Souza Aguiar, no centro da cidade. Quando cheguei para vê-lo, ele já havia partido. Alguns de seus amigos me contaram que ele havia visto o rosto da criatura, havia estado com ela frente a frente de forma muito corajosa. Nunca terei certeza. O laudo hospitalar indicava apenas parada cardiorrespiratória. As histórias eram muitas. Os ataques nunca foram esclarecidos. Seu avô se esforçou. Durante o enterro não foi possível perceber cicatriz no pescoço ou outra parte do corpo. Houve também quem dissesse que ele apenas discutiu veementemente com um dos colegas de trabalho e o pico de estresse culminou em sua morte, já que ele não se cuidava. Você era muito pequena, mas desde sempre teve um herói. Hoje ele mora na nossa lembrança e se, não há mais ataques desse tipo, seu avô participou do sucesso dessa empreitada. Há alguns anos não há mais medo. Estamos seguros. Nossa estrela vive em nosso coração e nesta foto na parede sobre a máquina de costura.
Não sabia se me sentia ridícula por medo de algo que mal presenciei e fazia parte das memórias da infância ou se deixava que a curiosidade me trouxesse respostas. Eu tinha medo e decidi não pagar pra ver. Corri como quem faz exercícios, aproveitando o ritmo para observar tudo à minha volta e não ser surpreendida. Via-me criança, sentia o abraço contundente do meu avô e seu cheiro de livro clássico e perfume antigo.
A PM agora é constituída de reduzido quantitativo, pessoas responsáveis quase que totalmente pela operação da segurança virtual que incluía câmeras, drones, radares, sensores de presença e monitoramento via dados de celular. As histórias, no entanto permaneciam as mesmas, embora já pertencentes a tempos já distantes. Há quem jure que havia, e ainda há, a presença de alguma criatura extremamente inteligente e ameaçadora que a segurança virtual e as investidas pessoais e tradicionais não conseguiam conter.
Cheguei ao ponto de ônibus para retornar a minha casa. Eu suava e a sensação de haver alguém muito próximo a mim permanecia. Eu pensava nos meus avós. Nas histórias ricas de significado e pobre de detalhes e comprovação, misturadas à imaginação de criança. Pensava no caixão lacrado em que foi enterrado o meu avô. Não havia expressão, cicatriz e ao menos semblante que pudesse ser analisado, encerrado. Meu avô tornou-se uma espécie de figura mitológica pelo que representou, e minha avó, por transformar em linguagem a sua trajetória, como curadora e expositora de seus feitos, sua “vida e obra”.
O ônibus demorou dez minutos para despontar e me dar a sensação de alívio por sair daquele lugar tão familiar e ao mesmo tempo impossível de reter, a não ser que fosse na retina e na lembrança adulta, que agora brigava por espaço com a lembrança menina.
Cheguei em casa e, diante da foto de família no porta retratos sobre o criado mudo, respirei longamente. Era imaginação. Fruto de estresse e tensão acumulados. Apertei a foto contra o corpo e sorri. -Tola! Fui me preparar para o banho. Havia almoço a fazer e alguns encontros planejados.
Fechei a porta do banheiro e entreguei-me ao prazer do banho, para limpar inclusive os excessos dos pensamentos mofados e barulhentos, enquanto a melodia da água do chuveiro impedia que chegassem até mim os ruídos externos. Na rua, bem de frente à minha janela semiaberta, uma criatura de semblante escuro e amargurado, atacou violentamente uma mulher que passava roubando-lhe os pertences. A câmera de segurança da rua havia sido quebrada no dia anterior.
Era um homem! A criatura era o mesmo homem que, aos poucos, foi perdendo espaço, voz e vez em uma sociedade virtual. Uma criatura antes dona de tudo e de todos, reivindicando seu espaço e seu poder, tentando tardiamente não ser substituído em um mundo digital onde ele quase não era mais necessário. A mulher, assustada, correu com as mãos no pescoço cobrindo a profunda cicatriz. Não conseguiu gritar e, cambaleando, retirou-se a procura de socorro.
O chuveiro digital e inteligente desligou após o tempo programado para o banho. Voltei a sentir a presença imposta, ave faminta sobrevoando o céu em noite de lua cheia e silenciosa. Eu não vi, mas eu mesma sou também um sensor de presença. Aquela mulher sumiu em meio a uma aglomeração de curiosos. A criatura retirou-se impotente e sem forças, enquanto a água corria em direção ao ralo do banheiro, levando consigo as histórias lavadas. Até as mais improváveis. Até as que eu desconhecia.