Eterno enquanto dure

Era tão distante... Ele em Nova Iguaçu, ela na região dos lagos, refúgio predileto dos cariocas. Há três anos não dividiam mais o espaço da mesma casa espaçosa e da mesma loja de doces, pequena empresa construída com tanta alegria nos primeiros dos dezesseis anos em que o casamento durou. Os lucros eram poucos e igualmente divididos. As despesas também. Sabemos desde os séculos passados que um reino dividido não resiste e, assim, o “para sempre”, sempre tão relativo, encontra outras vias e vielas, fluidas e obscuras, em que pode seguir obstinado, ignorando as pressões das expectativas alheias.

A filha única era elo mais importante entre eles, e pesar da rebeldia tão comum do início da adolescência, era tratada como a princesinha tão desejada e querida, ora na casa do pai, ora na casa da mãe, de acordo com o humor e as necessidades da mocinha. Uma mocinha de cabelos curtos e verdes, para combinar com o mar revolto que carregava nos olhos grandes e inteligentes.

- Filha, a mamãe vai contar uma história pra você dormir.

- Mãe... ninguém merece! Eu já tenho treze anos. Eu, heim.

- E o que é que tem? Você é minha filhinha e além disso é uma história que vai te interessar muito.

A menina sorriu com a atenção dividida entre a conversa com a mãe e o celular. Era metade preguiça, metade desinteresse, num todo de “vamos acabar logo com o papo que eu estou afim de dormir.” Ajeitou-se na cama, diminuiu o volume da música e passou então a olhar a mãe com os olhos entreabertos.

Era uma vez um belo rapaz do subúrbio do Rio. Um verdadeiro príncipe! Por ter perdido os pais muito cedo e por pertencer à família com mais posses na região, tornou-se frio e arrogante. Certo dia, em seu aniversário, deu uma grande festa para receber a família e os amigos, esquecendo-se sem nenhuma intenção de uma velha amiga de faculdade, feiticeira e muito rancorosa.

Esta, ao se sentir desconsiderada , foi até a festa e invadiu o local, deixando todos os convidados espantados. A mulher deu um grande grito que ressoou no salão sobrepondo-se à música alta, o que fez o rapaz, furioso com a falta de educação, mandá-la retirar-se da festa.

- Depois de tanto apoio e consideração é este o tratamento que recebo? Saiba que tem uma roseira em seu quintal. Enquanto ela viver você será solitário e quando ela morrer, você morrerá junto.

E saiu sem olhar para trás, batendo o portão e acelerando o carro de modo que em segundos ele dobrou a esquina, sumindo em uma densa cortina de poeira e indignação.

Ele não deu importância e bebia e brindava e aproveitava a festa tentando ignorar o incidente. O tempo passou a praga lançada mostrou-se cumprida na vida do rapaz. Todos os seus aniversários seguintes foram solitários e nenhuma jovem respondia às investidas que fazia. Ele parou de sair e tornou-se ainda mais frio e carrancudo.

Ali, praticamente nas redondezas, morava um velho homem, pai de duas belas moças. Um dia ele precisou ir a São Paulo por motivos de trabalho. Era um excelente vendedor e adorava as filhas, que criara sozinho. Ao perguntar o que elas gostariam que ele trouxesse de presente, uma delas pediu uma bolsa de marca famosa, na qual já estava de olho há um tempão. A outra pediu que apenas trouxesse um buquê de rosas porque gostava muitíssimo de plantas e flores. Além disso, utilizava as folhas e pétalas envelhecidas como marcadores de páginas para seus adorados livros.

O pai retirou-se para a viagem e ainda a alguns quilômetros de casa seu carro quebrou de forma que nem podia seguir viagem e nem voltar a pé para casa devido a distância. Preferiu procurar uma casa na localidade e pedir para passar a noite. Encontrou logo a casa do belo e carrancudo rapaz. Ele permitiu que o homem fizesse um lanche e descansasse, podendo ir embora na manhã seguinte, mas sem falta.

Passada a noite, o velho homem agradeceu a gentileza e já retirando-se, observou a roseira próximo ao portão do grade quintal e lembrou do pedido da filha. Como havia poucas rosas, ele retirou quase todas , e a roseira, minguada, ficou ainda mais magricela e triste.

O dono da casa viu o ocorrido da janela da sala e correu até o velho homem para tirar satisfação e impedir que ele fosse embora levando assim as rosas na maior cara de pau. O homem justificou-se explicando que eram para a sua filha mais nova. O rapaz exigiu que o homem levasse a filha até lá e que ela se responsabilizasse e pagasse pelas rosas, ou então ele chamaria a polícia.

Após o mecânico mais próximo consertar a embreagem do carro, o velho voltou para casa e contou para as filhas o que tinha acontecido. A moça, que não tinha papas na língua, deixou em casa a irmã mais velha e foi até lá com o velho pai esclarecer a situação, já que as rosas foram pedidas por ela.

Chegou com as mãos na cintura afirmando que o pai não tinha culpa. As rosas eram pra ela. O rapaz disse que ela deveria pagar pelo furto. As rosas não eram gratuitas. Ela teve raiva, mas respondeu apenas para ele deixar seu pai em paz e que trabalharia para ele por uma semana.

Assim, descobriu que o belo e marrento rapaz tinha uma biblioteca. Pequena, mas maravilhosa e aconchegante! Uma sala clara e organizada, com uma mesinha, prateleiras em toda a extensão da parede que ficava de frente à entrada e com obras que ela inclusive deseja ler há muito tempo. Agora, a moça era quem a organizava e aproveitava para colocar a leitura em dia.

Borges, Drummond, Júlio Cortázar, Barthes, obra completa de Clarice Lispector, Saramago, Euclides da Cunha, etc, etc. Eles começaram a ler juntos e discutir literatura todo final de tarde. O velho pai viajou e ela nem se incomodava mais. Adorava estar em tão boa companhia e a semana passou em um passe de mágica.

Apaixonaram-se e casaram-se em poucos meses. Foi ela quem ajudou a cuidar da roseira, afastando a mandinga lançada há tanto tempo. Tiverem uma filha e foram muito felizes.

- Hum. E daí? E depois? Perguntou a menina esperta e sem paciência.

- Daí, alguns anos depois ele teve um caso com a vizinha. Mulher mais velha e sem nenhuma educação. Começou a mentir, a chegar tarde. A esposa descobriu mensagens no celular e não admitiu ser feita de boba. Afinal, era uma princesa e ninguém a passaria para trás.

- E o que aconteceu?

- Separaram-se. Ele se mudou para Nova Iguaçu e deixou a vizinha, que só estava interessada no pouco, mas suficiente dinheiro dele. Ela, mudou-se para a região dos lagos e agora tudo o que quer é apenas a pensão da filha.

A menina arregalou os olhos e gargalhou divertindo-se com o que ouvia.

-Moral da história e conselho importante: Nunca se apaixone por quem tem uma biblioteca. O “para sempre” não é garantido nem mesmo nos mais conhecidos contos de fadas. Um olho na página e outro no cônjuge!

A menina, para quem a leitura não fazia falta, sorriu, afagou as mãos da mãe, deu de ombros e dormiu, na cama espaçosa e confortável, na certeza dos dois amores recebidos. Enquanto isso, a princesa aproveitou o silêncio da casa para enviar e-mails para os fornecedores da pequena loja compartilhada. De leitura não queria saber tão cedo.