Borboletou com a Asa Dura 2

O que tinha? O que oprimia? Para, naqueles instantes, ser fervida pelas emoções, surrupiada na dignidade, aquele quê interno que deveria estar imexível quando tocava, a paz que excede o entendimento deveria estar, a mesma que é percebida na expressão de um músico que faz a união dele com o instrumento quando executa as notas.

Afinal, havia estudado mais de oito anos para sentar na banqueta de um órgão para tocar hinos sacros de louvores a Deus.

Inicio os estudos com a irmã mais velha, por volta dos dez anos. O conteúdo programático fornecido pela instituição religiosa era para ensino da música erudita, considerando que o instrumento era órgão clássico.

A iniciante, que concorria ao preenchimento de uma vaga para o cargo de organista dos cultos oficiais, deveria submeter-se aos testes para admissão junto a examinadora, empossada pela Instituição para aferir as competências e habilidades das candidatas, para, assim, aprovar ou não a pretendente.

Na fase inicial dos estudos, buscava a preparação para a primeira avaliação junto a examinadora. Tocar nas “meia hora”. Depois, sendo jovem, nos cultos de jovens, seguindo mais aprofundado nos estudos, e conseguindo êxito, habilitada para ser organista nos cultos oficiais do templo onde frequentava.

Finalmente, depois de uma avaliação apurada pela examinadora, era oficializada, passaria exercer o cargo de organista em qualquer Templo da Instituição, no Brasil ou no exterior, caso fosse convidada, e desejasse.

Havia uma certa concorrência ao cargo. A vaga era somente um órgão para cada igreja. As mulheres podiam acompanhar a orquestra somente com este instrumento , que era formada 99,99% por homens.

Meninas não eram liberadas para tocar instrumentos de cordas, metais, sanfonas e de sopro, somente os meninos. Daí a concorrência para o cargo de organista entre as meninas.

Talvez, quem sabe? Se fosse oferecido vagas para meninas tocarem instrumentos que os meninos tocavam, mesmo que em número reduzido, a pressão psicológica nas meninas não seria. Quem sabe?

Aos doze anos, pensei, quero tocar nos cultos oficiais, e um dia ser oficializada.

Passar por todas as fases demorou mais de oito anos, partituras e partituras, escalas cromáticas, conteúdo teórico, solfejos com o bona.

A irmã mais velha, a professora de música pacienciosa que tive, tolerava meus destemperos no começo, tinha somente dez anos, passava com muita paciência seus conhecimentos, buscava de fora orientações de irmãs mais instruídas na música.

Aquela menina de dez anos, depois de oito anos, apropriou-se do domínio básico da música erudita, oficializando -se ao cargo.

Queria passar nas avaliações, não queria voltar para casa sem a aprovação.

Nos dias que antecipavam às avaliações, passava ter cólicas intestinais, taquicardia, angústia, o medo de não passar nos testes, de esquecer a execução da escalas, que deveriam ser decoradas nos testes finais, de não atender as exigências para aprovação.

No momento de ser avaliada, faltava força nas pernas, a voz da examinadora escutava longe, as mãos trêmulas eram nitidamente percebidas ao tocar nos teclados, o suor escorrendo perna abaixo. O medo, o terror se consumava no momento do teste.

Sobretudo, mesmo dominada pelo pânico, conseguia o acerto necessário para ser aprovada.

No primeiro dia, ao tocar no culto, na meia hora, os tremores, a dor no estômago provocada pelo nervosismo veio à tona, pensava que não conseguiria, as pernas trêmulas saltitava por entre os pedais. A vontade era de não seguir, levantar da banqueta, descer do cercadinho.

Como fez muitas vezes depois, os três primeiros hinos com a orquestra, administrava o desespero, e, depois, ficava mais calma nas execuções dos demais hinos durante o culto. O subconsciente estava impregnado de reflexos, impressões negativas, neuroses.

Reviver estes instantes neste hoje, olhar por debaixo do pano, buscar a realidade imanente, é concluir.

Quanto desperdício! Com tanta riqueza de conhecimento, com os movimentos do corpo intactos, buscando agradar à Fonte Divina, tocando órgão clássico, ocorria ao contrário. Ansiedade, medo, pavor de errar.

Faltava o olhar para dentro. Faltava o olhar para dentro!!! Tinha olho, e não enxergava(me).

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 27/03/2021
Reeditado em 28/03/2021
Código do texto: T7217493
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.