Sherazade às avessas
“Quanto tempo ainda tenho?”, perguntou ela.
“Cerca de meia hora”, respondi.
Em minha profissão eu me acostumara com todos os tipos de ânsia, inclusive as minhas, mas aquela não era como as outras – talvez pela tranquilidade com que a pergunta foi feita, as mãos calmas sobre os espaldares da poltrona, a face sem os rictos comumente relacionados a angústias ou dores.
“Posso contar uma história?” A impressão foi diferente, e certa surpresa me assaltou. Há tanto tempo eu fazia aquilo, e eis que um sopro de ar fresco bafejou o dia. Somos todos humanos em nossa curiosidade – a criatura que não a tem pode até ser classificada oligofrênica ou sociopata, e creio não me encaixar numa ou noutra classe –, então, acenei a cabeça aquiescendo. É imperativo, nesse trabalho: quanto menos eu falar, melhor.
Aqui, peço aos leitores que considerem a dificuldade em escrever a narrativa de outra pessoa, tentando ao máximo preservar seu estilo – mas sabendo que acontecerão amálgamas –, e desde já peço perdão pelas ilações e passeios emocionais, tão pouco afeitos a alguém como eu. Espero também que confiem em minha memória, apesar dos tantos casos que já tratei; informo ainda que a transcrição não fere a ética profissional – o que, por si, em nada depõe a meu favor, posto que obrigação.
Ela começou dizendo que não se arrependia de nada, senão do que havia feito sofrer aos inocentes – “mas, quem, de fato, é inocente?”, e nisso concordei em plenitude. Dado o tempo se esvaindo, era impraticável uma discussão objetiva para delimitar critérios sobre honra ou vilania, então concordamos tacitamente em não enveredar por esse atalho.
“Desde criança persegui o amor. Acho que não sentir amor de mãe pode fazer com que muitos procurem incansavelmente o sentimento de aceitação de si e do outro, então, sempre me fiz aberta a dar e receber amor, carinho e cuidado. Querer bem a alguém é a melhor emoção que podemos sentir; em seguida, vem a gratidão. E meus sentimentos são profundos e duradouros como as crises de enxaqueca que tenho de vez em quando. Aproveito para agradecer antecipadamente por tudo.”
Murmurei qualquer coisa, como convinha, e ela continuou.
“Foi assim que, aos quinze anos, aceitei os encontros furtivos com um rapaz que já tinha namorada, com a qual casou quando a engravidou, dois anos depois. Escapei da mesma sina porque ele, desde o início, me apresentou a pílulas anticoncepcionais conseguidas com um tio médico, as quais eu tomava sem vontade, mas para agradar. Perguntei se a outra não se prevenia; respondeu com um surpreso e enfático ‘claro que não’, mas me pediu desculpas pela gravidez, numa espécie de negação do próprio filho. O que morreu em mim nesse dia foi mais que um amor, mas a esperança de qualquer decência por parte dele. De fato, a atual esposa e mãe de seus filhos é traída agora com uma moça com metade de nossa idade. Enfim, antes ela do que eu, e nisso, ao menos, saí-me bem.”
“Pode-se dizer que sim”, respondi. É importante preservar as ilusões alheias se não estão prontas para abandonar o casulo. ‘Colabore com o inevitável’, ensinava certo colunista social, há mais de trinta anos. Aprendi, por certo. E colaborei: “Mas, e o resto da história?”, ao que ela a retomou.
“Um dia conheci um rapaz carente de família, como eu. Era inteligente e carinhoso e eu o amava, admirava e respeitava. Depois de seis meses de relacionamento, propôs morarmos juntos e termos filhos. Para não perder tempo, paramos com qualquer método anticoncepcional, e logo engravidei. Tivemos dois filhos em quatro anos e meio; eu parei de estudar para cuidar das crianças e da casa. Ele era bom pai e provedor, embora entre o meio e o fim tivesse se tornado distante e meio crítico para comigo; mesmo assim, ficamos juntos por oito anos. Na separação, conseguiu a guarda das crianças com ajuda de meu próprio pai, e alijou-me de qualquer patrimônio conjunto. Mas nada se faz sem que o mundo saiba, então, uns dez anos depois da separação, ouvi de fonte fiel que, no início de nossa primeira gestação, ele havia procurado uma ex amante, muito angustiado pela responsabilidade de ser pai – que ‘eu’ lhe impusera. Eu. Eu. Dá até vontade de soletrar o monossílabo. E-U. Perceber que passou quase vinte anos amando uma fraude não ajuda a autoestima de ninguém, concorda? Mas, ao menos, pude me libertar. Querer bem e sentir admiração, desejo e respeito por outro ser humano seria um feito e tanto para toda pessoa que tivesse ficado, por cerca de duas décadas, enganchada em um engano, feito ovelha gorda em passadiço estreito. O pobre animal sai da encrenca com o couro estragado e vai direto para o abate. Enfim, como enxaqueca, sentimento só passa quando quer.”
Àquela altura, é lógico que eu havia identificado o padrão – mas vítima alguma merece julgamento, ainda mais se empilha tão bem a madeira da pira de seu próprio sacrifício. No melhor estilo Pequeno Príncipe, contribuí com algo como ‘as pessoas precisam se responsabilizar para com as expectativas que geram’, ao que ela deu um gritinho meio sussurrado, em patética satisfação pelo reconhecimento e aceitação de suas necessidades por outrem. É impressionante como algumas pessoas realmente são boas, tão boas, que se deixam cair na armadilha da culpa pelo egoísmo dos outros. Tenho visto tanto isso na minha profissão que por vezes a vontade é de tratar quem me paga, em vez de quem querem que eu trate.
Mas a história era dela, e eis a continuação.
“Depois da separação pouco vi meus filhos. Eu bebia e dançava para esquecer e dormia para lembrar, e no processo conheci um companheiro de folia que me emprestava o ombro para o choro que sempre vinha. Casei com esse por gratidão e com muita pena de nós dois; pena é uma espécie de amor, eu pensava. E durante mais uma década temperei o passo com resoluta vontade de trazer harmonia ao dueto, até perceber que meu par escapulia pelo salão, enquanto eu, de olhos fechados e com a cabeça encostada no ilusório consolo antigo, seguia um compasso estéril. Abrir os olhos todos nós abrimos, um dia. Ruim, mesmo, é não reconhecer a música.”
Nesse momento, ela pediu um copo de água; levantei-me e a servi, sempre com atenção à porta fechada e a barulhos externos – inexistentes, como sempre. Eu escolhera bem meu ambiente de trabalho. Mas a ocasião estava se tornando única, então dei mostras de me preparar para o desfecho.
“Espere, tem mais! E ainda temos tempo, não é?”
A questão ecoou entre nós como ondas de pedrisco quicando em lago plácido. De fato, a pressa denotava apenas que minha própria ânsia ameaçava sair do controle; como não aceito isso, dei corda no relógio. E ela continuou.
“Teve também um ladrão de carros, por causa dele perdi minha casa – mas sobre esse não quero dar detalhes, apenas registrar que me chamava de ‘minha paixão’ e era a alma divertida de todas as festas. E, não: lógico que eu não sabia que ele era marginal. Eu era carente, não irresponsável.”
“Isso é um pouco injusto. Como não esmiuçar uma parte da história que parece tão interessante?”, perguntei.
“Mas é justamente o contrário, pois aqui não há beleza alguma: ele apenas agiu de acordo com sua ambição desorientada e finalmente foi pego em flagrante. Ligou-me da delegacia dizendo ‘estou preso’, afirmou que o dinheiro da venda da casa tinha sido confiscado pela polícia e que nada havia a ser feito, de forma que perdi um arremedo de amor e, como já disse, uma casa. Mas justiça seja feita: era só uma casa, não um lar.”
“Sim, entendo porque não se importa com o bem: certas coisas têm preço, outras tem valor”. A seta do clichê lançada, fiz silêncio e esperei.
“Houve também um rapaz por quem senti um tipo de amor não identificado até hoje. Uma espécie de encantamento, talvez? Não sei. Só sei que ele me queria mas não queria me querer. No entanto, sempre se movimentava para mim como se houvesse um cio entre nós. Mas não há o que se construir sobre situação onde a fuga de um causa a desistência do outro. E eu fiz mais que desistir: impus o limite. ‘Não me procure’, exigi. É preciso muita coragem para pedir distância quando tudo que se quer é presença, pele, permanência. Finalmente, depois de muito tempo nos encontramos e o tal encantamento passou quando percebi que ele continuava o mesmo covarde de sempre, com o agravante de jogar a responsabilidade do que não quis realizar no colo de outra pessoa. Eu, ao menos, estico a mão, pego o que quero e arco com as consequências, sempre. Disso não abro mão.”
“Eu sei. É por isso que estamos aqui” lembrei-a.
“Será? É estranho como nos deixamos no passado, independentemente se as lembranças são boas ou ruins… Mas, continuando: após tantas desilusões, resolvi aquietar o coração, e fiz isso sem mágoa, apenas entendendo que meu tempo de ser feliz no amor já se fora ou nunca chegara ou chegaria. Eu me adapto facilmente à realidade, creio. Pois, bem: estava eu madura e tranquila, e, pelo confortabilíssimo fato de estar viva, vivendo com alegria simples os dias que ainda me faltavam, quando um conhecido do tempo da juventude chegou e afirmou amor desde sempre e eterno, demonstrando carinho e cuidado, jurando lealdade, beijando meu corpo todo e minha alma toda, e sendo, ainda por cima, capaz de eriçar os bicos dos meus seios e os pelos todinhos do corpo, porque o cheiro dele era um misto de canela com chuva em terra seca, porque seu pescoço era a melhor coisa de mordiscar em que eu já havia posto os incisivos, porque suas mãos, que pareciam até as minhas mãos sobre mim, falavam de certezas. Ora, dessa vez eu estava muito mais encrencada: sabia o que queria e o que poderia vir a ser, mas o encontro era real e forte, então, dei o salto no abismo da confiança, para o qual nenhuma ponte é possível.”
“Enfim, temos um final feliz?” Era sempre assim: um pouco de curiosidade sempre me deixava depois um gosto amargo na boca, e daquela vez parecia não ser diferente. Tempo é o único recurso do qual pouco disponho; o relato havia me feito perdê-lo? Meu desgosto, no entanto, não chegou aos olhos. E, com certeza, eu não seria profissional se me deixasse impressionar bem ou mal por histórias dramáticas ou melosas, especialmente as sem rumo. E sempre as há, sempre; parecem praga. “Tempo acabado”, avisei.
“Que pena, nem contei o principal. Você acha que estou aqui por certo motivo, mas talvez se engane. Façamos assim: conto o resto e você decide se valeu a pena esperar.”
Ela era boa, de verdade.
“Falei de saltos homéricos e agora falarei de abismos. Tenho absoluto cuidado quando começo um relacionamento: digo quem sou, como sou, e que a verdade é a base do respeito e da aceitação. Em qualquer relacionamento estabelecemos acordos; para mim, é fundamental que sejam cumpridos. Naquele, tudo foi acordado. Após a fase de foliã triste, eu havia me tornado uma pessoa bem calma. Assim continuei, aproveitando para cultivar os aspectos fundamentais de qualquer relação madura, pois um lar é farol e cais. Lamentavelmente, descumprir acordos sem sequer uma justificativa aceitável parece ser a tônica dos homens que cruzam meu caminho. Após ser pego quase em flagrante, por expor-se tantas vezes enquanto eu mantinha a cama quentinha apenas com meu próprio calor, refugou a verdade, ‘por medo de me magoar’. Seria hilário se o prego da decepção não tivesse sido batido com um martelo potente, e o som não reverberasse pela cidade toda.”
“Então, temos outro final infeliz?”, parafraseei-me.
“Calma”, respondeu ela. “Ainda estou contando; essa parte merece todos os detalhes”, e continuou.
“Não sei o que me deu, mas, ao invés de cansaço, a raiva finalmente me vestiu. Você, mais que ninguém, sabe que vivenciamos quatro sentimentos primitivos: alegria, medo, tristeza e raiva. Alegria faz com que nos fixemos em nossa zona de conforto, medo nos faz esconder ou fugir, tristeza nos paralisa ou impele a morrer. Apenas a raiva é, de algum modo, construtiva, pois é necessário destruir o que já existe antes de reconstruir algo no mesmo espaço. Então, decidi devolver com juros e correções tudo que havia recebido desde o primeiro malogro. Para tanto, fiz o que nunca havia feito: fingi-me de carente, quando não mais o era, tratei-o com carinho e zelo enquanto o sentia e olhava com desprezo, fiz amor imaginando outros, organizei bens para meu nome sem arcar com os custos, tudo isso enquanto estabelecia um piso de quantos machos diferentes colocaria entre minhas pernas – mas não em meu coração – para zerar a contagem de suas mulheres extras e aplicar vantagem quantitativa, já que a qualidade não estava mais em questão. Estabeleci fases e metas, e escolhi os homens a dedo: uns ex amantes que se tornaram amigos, uns novos amantes que não se tornariam amigos, um desconhecido para uma transa rápida de banheiro de avião, aquele cara que por meses me assediou pela internet mas eu recusei porque estava comprometida, nenhum amigo real meu, ao menos um amigo real dele. Sim, eu o magoaria. Afinal, ele pagaria por me deixar desejosa dele enquanto estava com outra; por se encontrar com outras usando camisas e cuecas e calças que eu tão carinhosamente havia escolhido, comprado e lavado; por desviar recursos nossos para pagar presentinhos, jantares e quartos de motel; por trocar mensagens picantes com outras enquanto eu dormia a seu lado; pelo meu constrangimento em saber que seus amigos chamavam a puta do momento de sua ‘namorada’; por mais constrangimento ao pensar que todos riam de mim pelas costas, especialmente quando estávamos em público e eu demonstrava carinho com afagos, beijos e olhares; por usar nosso carro para transportar suas traições e culpas; por ele hipocritamente pedir desculpas à puta por ser carinhoso comigo; por sequer ter sentido pelas outras o interesse correto, que justificasse uma aproximação decente entre duas pessoas – porque paixões e afinidades acontecem, sim, cabendo a quem está comprometido arcar com as consequências do desejo realizado ou não –; por ousar pedir desculpas a mim e afirmar-se envergonhado apenas após ser exposto; por todo o respeito que tive e que não foi recíproco; por ele brigar com pessoas amigas que finalmente tiveram coragem de organizar e me apresentar provas de suas traições; por continuar afirmando amor eterno e pedir chance para demonstrar que podia merecer minha confiança de novo; por reclamar que foi exagero eu lhe expulsar de casa; por trair minha confiança de novo ao pedir para voltar sem me contar a verdade in-tei-ra, nem quando eu pedi encarecidamente que exercitasse essa dignidade; por me fazer olhar atravessado para cada mulher de nossas relações, em suspeita tardia e inútil; por me fazer administrar a tristeza e decepção de meus familiares e amigos, que o respeitavam e admiravam; por me fazer também enganar e decepcionar familiares e amigos, afirmando uma reconciliação por amor onde o sentimento era apenas desprezo; pelo meu vazio em não sentir mais a alegria de chamá-lo pelo apelido carinhoso; por transformar o apelido carinhoso em sátira cotidiana; por ser incapaz de perceber e reconhecer que cada detalhe de um amor é importante; por me fazer perder definitivamente a capacidade de acreditar que o amor é um conforto. Resolvi que, se não podia ser feliz por amor, seria feliz por ódio.”
Aqui a história me prendera. “Você sofreu também”, perguntei. “Valeu a pena?”
“Sim. Eu estava em paz quando ele chegou, e perdi tudo por sua irresponsabilidade. Conforta-me saber que ele se sentiu muito pior que eu, por minha malícia e fingimento, e de como todos aqueles homens tinham carinhosamente guardado uma foto minha, nua e plena após os bons momentos, justamente porque deles eu nada queria depois. Se ao me trair ele tentava não ser descoberto, eu, ao contrário, organizei tudo para que tais presentes lhe chegassem no seu aniversário de sessenta anos, onde nossas famílias estavam reunidas, e quando sua humilhação foi extrema. A outra vantagem foi que ali várias portas se fecharam, inclusive a de uma reconciliação real. Pela primeira vez em anos senti-me completa e sem necessidade alguma de amor.”
“Acho que a isso uns chamam vingança”, pontuei. E avisei: “Acabou nosso tempo.”
“Eu chamo a isso ‘ajuste de contas’. Vingança é o que pagaram você para fazer.”
A calma continuava ali. Já disse que ela era boa, de verdade, e em vários sentidos.
Aproximei-me e, em total respeito por sua história, mirei a pistola em seu coração e atirei 6 vezes. No entanto, até hoje me arrependo de não haver gravado nomes nas balas.
Havia tempo, afinal. Sempre há.