A Subir a Serra
Nasceu de pais já maduros e não foi desejado. Cuidavam dele as tias, adolescentes descuidadas, e David crescia, entre os banhos frios na tina da roupa e a água morna dos charcos, se chovia. O calor durava o ano inteiro e o menino tinha o quintal e o mundo lá de fora para se encontrar. Comia quando tinha fome, bebia água morna da torneira e quando se magoava chorava sozinho ou guardava mudo as dores. Enquanto não teve idade para a Escola, ficou por ali a aprender tudo com as falas dos outros e a imaginar-se como o pai no trabalho. Um pau de vassoura entre as pernas dava um cavalo dos melhores e, naturalmente, ele cavalgava ao sol até sentir sede, ou se fartar da corrida. Tinha na tampa de uma panela o volante da viatura e veloz corria pelas ruas sem gente ou roncava para subir a serra se fosse caminhão. Fazia tudo sozinho. Conduzia, acelerava, metia mudanças e reduzia a marcha soltando ruídos correspondentes. Um dia achou-se cheio de pelos e era um homem mais alto que o progenitor. Bom aluno, tinha poucos amigos e era calado. Quando acharam que era altura, fez-se mecânico. Aprendeu de ver fazer, de amar carros, de lhes saber a “doença” pelo ruído dos motores. Ganhou fama e tinha um bom salário. Via-a passar, via-a olhar mas nunca a fixou de frente. Um dia ela veio para remendar um pneu da bicicleta e noutro para endireitar o guiador. Ficou a ver de perto o conserto e divertia-se a vê-lo nervoso com a sua proximidade. Como ele era tímido, enviou-lhe ela o recado: se a queria como ela a ele deveria vestir a camisa de xadrez na quinta-feira e não usar, nesse dia, o fato-de-macaco. E David, como se fosse ainda menino, meteu uma primeira e fez o barulho do caminhão a subir a serra. Estava feliz.