CONDENADO À PENA MÁXIMA NO MÍNIMO
Ouve o barulho de passos no corredor com variadas sensações. Ora experimenta a mescla de ligeiro temor e profundo ódio, ora oscila entre o que lhe resta de impaciência e a calma letárgica de quem está consciente de que nada resta a fazer ante a situação absurda e incontornável.
Os passos aumentam e diminuem, sumindo-se de todo. Vazio. A espera do cadafalso aumenta o vácuo do ambiente. Momento de pagar os crimes que cometeu. Não foram poucos...
Recorda, sem pesar, como de hábito, a mulher a quem constantemente enganou. Aquela nojenta! Incapaz de entabular uma conversação construtiva ou de estar à altura de apoiá-lo em seus planos. Insossa, repleta de medos, insegura, totalmente inabilitada a provê-lo do amor que ele merecia. Nem se incomodava muito com o amor. Bastaria o prazeroso sexo para sentir-se recompensado, orgulhoso em seu machismo.
Qual o quê! Aquele monte mal ajambrado de carne e ossos nem merecia o título de mulher. À medida que os anos passavam, mais se convertia em massa inerte, “coisa” estranha a gravitar ao seu redor, como insignificante asteróide atraído para a órbita do planeta mais poderoso. Impiedoso, viu-a prostrar-se e degradar-se cada dia mais, vítima de inusitada velhice precoce.
Traste indigno de merecer sua atenção, que agora se dirige a figuras e passagens diversas de sua vida prestes a terminar. Dizem que, ante a proximidade da morte, a vida passa como a reprise de um filme. Se assim for, não espera gostar do que verá. Houve muitos episódios desagradáveis de que preferiria esquecer-se. As baboseiras que ouvia na escola sobre a importância do amor ao próximo e da solidariedade com os semelhantes. Conversa fiada de professores e padrecos.
Competir ferozmente e vencer, essa, sim, era a realidade da vida! Ele vencera pouco. Deveria haver conquistado muitas vitórias mais. Sem ficar ruminando a frequente inveja dos colegas que se saíam melhor nos estudos e no trabalho. Julgava-se um desfavorecido. Lembrou-se de vários patrões safados e injustos que o preteriram, concedendo prêmios, elogios e aumentos de salário a outros.
De nada lhe valiam seus dotes de bajulador. Via-se preterido na hora H. Quantos idiotas! Ele tratava de vingar-se, porém. Riu com a costumeira satisfação mesquinha ao pensar nas vezes em que, sem ninguém saber, surrupiou material do escritório, deixou luzes e equipamentos ligados de propósito e outros tantos prejuízos aprontou como forma de retaliação. Vangloriou-se intimamente de sua admirável capacidade de resposta às desfeitas recebidas.
Faltou-lhe atingir posição de comando. Quanta melhoria não iria impor! Para começar, teria posto na rua bom número de elementos inúteis no seu modo de entender. Aquela velha que servia café e evidentemente se mantinha no emprego por puro e discutível bom samaritanismo de alguns tolos. Ou, então, o rapazola que distribuía a correspondência e o enojava com seu excesso de bons modos. Tipo ridículo!
Vociferou contra o tédio do trabalho e, ao mesmo tempo, das horas vagas sem ter o que fazer. Lia quase que por obrigação, para conseguir dizer algo em certas rodas de conversa. Ia ao cinema quando acompanhado de alguém de interesse, mas em geral não encontrava graça naquelas histórias fantasiosas. Cansava logo de escutar música, ficava sem compreender como tanta gente podia apreciar aquele tiririri enfadonho.
Refletindo bem, as artes seriam uma forma de enganação. Uns caras se metiam a artistas, meia dúzia de “doutores” os bendizia e aí todos vinham a aplaudir, achando o máximo.
Por sorte ele nunca foi assim. Nunca se deixou enganar. Para que perder tempo com artes se mais valia cuidar de assuntos sérios? Política, por exemplo. Importante saber quem está por cima e manda mais. Um dia, a oportunidade vem de conhecer um tipo poderoso e arrumar-se na vida. Foi isso que mais lhe faltou. Tudo teria sido diferente, não estaria agora a um passo do cadafalso. Arrepiou-se ao lembrar-se de tal circunstância.
Se fosse endinheirado, tampouco se encontraria a amargar hora tão penosa. Pois é, para alguns, a vida sorri. Para outros, como ele, sofrido, amargurado, a malvada dá uma banana.
Voltou a ouvir passos. Sobressaltou-se ligeiramente. Poderia ainda haver esperança para ele?
Os passos tornavam-se mais audíveis. Dessa vez, não havia dúvida: vinham buscá-lo.
A porta abriu. Chamaram seu nome. Pesado, lento, formulando imprecações em seu íntimo, deixou-se levar como sentia haver feito em tantas ocasiões anteriores. A diferença estava, todavia, em que aquele foi seu momento derradeiro. Chegara afinal a morte inclemente de mais um desprezível, abjeto e medíocre cidadão comum.
Maio 2020.