O Ninho
Para cortar de vez com o passado guardou todas as fotografias que tinha numa caixa de cartão e juntou - a a uma série de revistas de moda num velho armário existente na garagem. Estavam lá fotos do seu casamento com o leviano do Artur, as do baptizado do Zequinha, muitas do tempo dos avós e da Escola, das casas da aldeia, da quinta dos tios. Deixou que o novo tempo começasse com a amizade especial com o Germano e quando a vida enfim se estabilizou pensou vagamente na caixa das fotografias dizendo para si mesma que rasgaria as imagens com o Artur não fosse o seu Germano ficar triste de as ver. E, descuidada, esqueceu as fotos, as revistas, o armário da garagem. Precisando de mais espaço para guardar ferramentas, o marido, sem perguntar nada a ninguém, começou a arrumar tudo com método e paciência. Deitou no lixo as revistas velhas, os arquivos com papelada inútil, os pregos, fios e louça quebrada e chegou por fim à caixa onde o passado de Joaquina jazia ao lado das velharias que se acumulavam ali. Sacudiu-a e achou-a leve, farfalhuda, sem som que identificasse o conteúdo. Curioso, abriu-a com mil cuidados e viu roídos os corpos, os rostos, as casas da família da mulher. Caras sem cabelo e sem boca, mãos soltas, pedaços do registo das festas e demais coisas num relance. Tudo moído em pedacinhos onde a rata preparou o ninho, pariu a ninhada e deu seguimento à vida. Ali estava, trucidado, o tempo antigo da Jaquina. - Mostro-lhe, não mostro, conto-lhe ou não? E pegou na caixa de cartão com o que foram fotos e um ninho de ratos e jogou no saco preto onde havia de tudo, até revistas velhas do tempo da Soraya.