Lábios

Eu vinha tendo uma série de sonhos indecifráveis. Geralmente eu acordava sentindo como se uma pequena corrente elétrica estivesse correndo por debaixo da minha pele. E ficava sentado na beira da cama tentando fazer sentido do que tinha sonhado. Mas aos poucos ia esquecendo as cenas. Ficando na memória apenas alguns flashes e sensações quase absurdas.

Daquela vez a única coisa que eu me lembrava era de uma mulher me sussurrando ao pé do ouvido.

“Amargos são os grandes lábios da vida.”

Eu me perguntava o que meu subconsciente queria com aquilo tudo. Se queria me dizer algo, bem que poderia fazer de uma forma objetiva. Mas nada era fácil. Na minha vida nada era muito objetivo.

Me levantei da cama, escovei os dentes, esvaziei os intestinos e tomei um banho quente. Fiquei debaixo d’água de olhos fechados, tentando não pensar em nada. Quase num exercício meditativo. Péssimo, porque além de falhar na missão de não pensar em nada, eu estava desperdiçando água e eletricidade. E no fim do mês era eu que pagava a conta.

Pensei nas ruas vazias e na vida que eu ia perdendo confinado entre as paredes da minha casa. Mas o meu confinamento era muito mais do que físico. Era espiritual e emocional. Eu já vinha fechado dentro de mim mesmo muito antes da pandemia me obrigar a voltar a me acostumar a sempre estar sozinho.

Eu não deixava ninguém entrar na minha vida. Pelo menos era assim antes de...

O telefone tocou e interrompeu minha tentativa de fuga de mim mesmo. Abri os olhos e fechei o chuveiro.

Me enxuguei e quando peguei o aparelho, ele já tinha parado de tocar.

Não me preocupei em olhar quem tinha ligado. Deixei o telefone de lado e me vesti.

Tinha o estômago vazio, mas nenhuma fome. Era normal pela manhã.

Um café era suficiente.

Eu precisava de um café amargo.

Amargo como os grandes lábios da vida.

2

Ela tinha os olhos de quem já havia chorado muito em outros tempos. E eu sentia que eles tentavam ativamente penetrar a minha mente. Talvez fosse só impressão. De qualquer forma, eu gostava do jeito que ela me olhava.

Me afastei pra que ela entrasse. Glauce deu dois passos pra dentro e deixou a bolsa no chão. Deixou a máscara sobre a mesa da sala e limpou as mãos com álcool, de um sprayzinho que tirou do bolso. Depois se virou, olhou pra mim e falou finalmente.

- Bom dia, né!

- Bom dia.

- Que cara é essa?

- Não dormi muito bem.

- Pesadelos de novo?

- Não. Só sonhos. Sonhos que não consigo entender muito bem.

- Já tentou anotar tudo depois que acordar?

- Adianta?

- Kerouac escreveu um livro assim. Se chama o livro dos sonhos. Ele acordava e começava a escrever tudo o que tinha sonhado, do jeito que lhe vinha na cabeça. Mesmo que não fizesse sentido.

- É um jeito estranho de escrever.

- É. Mas as vezes eu faço isso também. Tenho um diário cheio de sonhos que tive.

- Talvez eu tente isso.

Ela ficou me olhando, se aproximou e me deu um abraço apertado, como se estivesse me confortando por alguma coisa.

- Você comeu alguma coisa?

- Não. Só fiz um café.

- Café não alimenta.

- Eu não tenho fome pela manhã.

- Não é lá algo muito saudável.

- É um hábito antigo. Essas coisas são difíceis de mudar. Coisa de cachorro velho.

- Você esquece que eu sou mais velha que você. – Ela falou sorrindo.

Glauce foi até a geladeira, abriu e avaliou o conteúdo.

- Pensei que só ia ter cerveja aqui... mas você até que tem uma geladeira bem abastecida. – Falou tirando uma bandeja de ovos e uma caixa de leite.

- É que eu estou evitando sair pra comprar coisas. Aí compro logo tudo de uma vez.

- Onde fica sua frigideira?

- Eu estou bem. Não precisa cozinhar pra mim.

- E quem disse que é pra você? Eu estou morrendo de fome.

Abri o fogão, tirei uma frigideira de dentro e entreguei pra ela.

Glauce botou a panela no fogo, quebrou três ovos dentro e se pôs a mexer com uma colher de pau.

O telefone tocou novamente. Fui até a sala e peguei o aparelho. Não era um número conhecido. Atendi.

A pessoa do outro lado não falou nada.

Desliguei.

Li novamente o número, mas não lembrei de quem poderia ser. Enfim. Não devia ser nada importante.

Quando deixei o telefone de lado, Glauce voltou da cozinha com um prato fumegante e uma caneca cheia de café. Deixou tudo sobre a mesa, sentou-se e encheu um pão com o ovo quente.

- Quer? – Me perguntou.

- Agora que senti o cheiro acho que quero um pedaço.

Ela sorriu.

- Quem era no telefone?

- Ninguém. Número desconhecido. Atendi, mas não falaram nada.

Ela sorriu novamente e deu uma mordida no pão.

- Como tem sido os seus dias? – Ela me perguntou depois de engolir.

- Repetições da mesma rotina. Trabalho pelo computador. Estudo quando consigo. Escrevo quando tenho inspiração. Bebo cerveja quando não tenho. Tenho dormido muito pouco.

- Dá pra perceber. Você sempre está na internet de madrugada.

- É. O que significa que você também está.

Glauce deu a última mordida no pão e tomou um gole do café.

- Eu tenho um relacionamento abusivo com a insônia. – Falou depois de esvaziar a caneca.

- Somos dois.

Ela se levantou da cadeira e esticou os braços.

- Mas agora me bateu até um soninho.

- Eu sempre passo a manhã com sono.

Glauce sentou no meu colo e me deu um beijo nos lábios.

- A gente podia gastar o resto da manhã cochilando né?

- Parece uma ótima ideia.

Ela se levantou largou as sandálias pela sala e andou até o quarto.

Por algum motivo, a vida pareceu mais simples do que o normal.

Tomei um gole de café com leite a segui até a cama atrás dela.

3

- Quem sabe em um ano, ou dois, nós sequer nos lembraremos desse dia. – Ela falou com as pernas entrelaçadas entre as minhas e a cabeça repousando sobre o meu peito.

- Pode ser.

- E o que isso significa? Quer dizer... o que faz com que nos lembremos de um momento, anos e anos depois deles terem passado?

- Acho que relevância. Nossa memória armazena informação com base em importância. É uma forma de economizar espaço.

- E pra onde vão as coisas que não damos importância? Pro esquecimento?

- Acho que ficam guardadas em algum lugar do subconsciente. Talvez seja por isso que sonhamos com coisas tão estranhas. Talvez daí que venham as sensações de dèja-vu.

- Então pode ser que um dia eu me resuma só a um sonho estranho na sua cabeça?

- Eu acho difícil ter certeza.

- Por que?

- Eu gosto demais de estar com você nesse exato momento pra conseguir pensar objetivamente em algo assim. E confesso que fazia um bom tempo que eu não me permitia sentir algo do tipo.

Glauce se encolheu um pouco na cama, inspirou fundo como se fosse falar algo, mas se manteve calada.

- O que foi?

- Eu queria poder dizer algo parecido. Não espere muito de mim.

- Tudo bem. Não é nada demais.

- Eu sempre decepciono as pessoas em algum momento. E é o suficiente pra eu virar uma memória perdida no fundo do subconsciente por falta de relevância.

- Parece meio pessimista.

- É minha realidade.

- Bem. Eu não estou pensando nisso por enquanto.

- E no que você está pensando?

- Estou pensando que se alguma graça do destino te trouxe até minha cama. Até minha vida... não foi pra que eu ficasse tentando antecipar o futuro. Viver o presente é suficiente pra mim.

Glauce suspirou pesadamente, se afastou e sentou-se na cama.

- Eu não sou boa com palavras como você. Não tenho como responder a isso.

- Não precisa.

Me sentei na cama e me aproximei para beijá-la. Inicialmente ela me afastou, mas eu a puxei mais pra perto.

Ela me olhou nos olhos e novamente eu senti que aquele olhar tentava penetrar a minha mente. Senti a mesma eletricidade que corria sob a minha pele quando eu acordava pela manhã. E foi então que ela finalmente cedeu e me beijou. Ficamos juntos até que eu quase perdi o ar. Então respirei fundo e fui descendo pelo seu corpo, até que afundei a minha cabeça no espaço entre suas pernas.

Percebi que enfim dessa vez, não eram amargos os grandes lábios que eu beijava.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 15/03/2021
Reeditado em 15/03/2021
Código do texto: T7207136
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