Comunista!

A terra era pequena, o povo mesquinho, o padre já velho. Para além dos ditos a única distracção que havia era a missa das dez. Vestiam-se todos a preceito, alguns levavam mais a sério a higiene, mostravam os ouros, sorriam à entrada e ficavam a vigiar tudo pelo canto do olho. Mulheres à frente e os homens, de pé, ao fundo da igreja. O padre falava mas, sem microfone, ninguém o ouvia. Olhavam-no sérios e o culto continuava com a elevação da hóstia seguida de comunhão geral. Marília veio de roupa nova. Saia rodada, decote de renda e, porque era vaidosa e tinha menos em conta o parecer dos velhos, pintara a boca de vermelho e pusera da lavanda que lhe dera o padrinho pelos anos. Fizera furor quando chegou e dificilmente os crentes calaram a admiração, a crítica, a condenação. E ela, Marília, olhava todos, um a um, num desafio mudo. Nem catecismo, nem terço, nem véu. Ficou na primeira fila num banco de família. Ignorou a chapa que o reservava e permaneceu nele mesmo depois da matriarca, andando de joelhos na sua direcção, lhe pedir que saísse. - Cabemos bem as duas, disse, sentando-se. Aqui somos todos iguais, não devia haver privilégios, acrescentou. Na hora da comunhão apresentou-se logo atrás da primeira idosa e o padre, batendo-lhe no rosto, ordenou que fosse antes lavar a cara e, passando à frente, negava-lhe a comunhão. Foi então que, subindo a raiva à rapariga, ela arrancou a hóstia da mão trémula do prior e engoliu-a. À saída calou-se o sussurro e a voz rouca de alguém gritou: - Comunista!

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 14/03/2021
Reeditado em 18/03/2021
Código do texto: T7206871
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