O Filósofo
- Profissão? – Carrego e arquivo coisas, esqueço-me de mim e do mundo a verificar contas, a conferir dados, a vigiar todas as hipóteses de fraude ou ilegalidade. – Escriturário? – Não, senhor, escreva antes filósofo. O homem riu-se e escreveu escriturário pensando que muitos doidos teria de aturar antes de sair do cartório. No fundo, cogitou, eram eles, os insólitos, que davam cor ao trabalho. Depois estendeu o documento para o homem assinar e viu-o ler tudo devagar, encolher os ombros e raspar o aparo da caneta numa letra firme, elegante, pontiaguda. Que seja, disse para si mesmo. Afinal nem todos sabiam que havia quem fosse mais que a figura seca de óculos a meio da cana do nariz, roupa larga, gravata torcida. Ele também não se percebia mais mas diferente. Vez por outra parava para respirar, segurava o papel na mão, achava-lhe o meio e furava-o tão rigorosamente como dobrava em três partes iguais, em menos de nada, as cartas a expedir. Se calhava cansar-se, ficava tempo largo a navegar nas ideias. Pensar, sabia-o de experiência, é purificar o ar, sair dali, ir onde tantas vezes quis e lhe faltou coragem. Lia muito fora do trabalho. Coisas clássicas para se situar, coisas fortes para se esclarecer. Pensava enquanto a barba e o cabelo lhe cresciam e a camisa ganhava surro na gola. Mora sozinho num quarto com trapeira. De lá vê a rua cinco andares abaixo. Quando o operário que arranjava o telhado caiu ele viu-o esborrachar-se no asfalto e ficar imóvel. Um tal voo, pensou, é directo. Se um dia decidir atirar-me daqui, antes de ir para o mundo dos calados, quero planar pela Baixa Pombalina, ver as colinas do alto e o azul do Tejo como o sentem as gaivotas. Morrer por acaso é sempre triste. A ele não, só se à má fila o empurrassem.