Uma Vida
Ainda menina já lhe cabia o banho dos irmãos, a limpeza da casa, o adormecer do último deles que chorava sem parar. Saiu da escola por não dar para as letras, diziam. Que não tinha cabeça, que nem todos estudam. Lembrava-se vagamente de que o que ela não tinha era capacidade para ficar acordada e atenta quando o corpo todo lhe doía, quando lhe faltavam horas ao sono. Viver era trabalhar, fazer a comida da família, girar ao som de más palavras e de gritos. Um dia veio o primo visitar os parentes e achou-a sozinha. Deixou-lhe um filho quando ainda mal lhe despontavam seios. Levou meses sem perceber o que lhe acontecia e quando ficou nítido que ia ter uma criança fugiu de casa e acolheu-se na da avó Maria. O filho morreu a seguir e ela poderia voltar se quisesse, disseram. Decidiu que era tempo de ir para Lisboa, acabar de crescer por lá, aprender a lidar com os grandes da terra que a queriam para criada. Mais trabalho, mais meninos para criar, um salário curto que às vezes se esqueciam de pagar. Aos domingos folgava, ia ver o Príncipe Real e o Zoológico, fazia amizades e voltava depois de almoçar algodão doce se o compravam na rua ou na feira. Voltou a ver o primo, agora mais velho e já com trabalho. Desta vez não cedeu. Se a queria, casava. E António, depois de a visitar mais vezes sempre a falar da rua para a varanda do primeiro andar, aceitou oficializar o namoro pedindo ao Dr. Afonso licença para ficar ao portão nos dias da sua folga por pouco tempo que fosse. Casaram em Sintra pelo S. Pedro e foram morar numa casa velha alugada. Se era feliz? Não sabia. Ele falava pouco e quando era domingo e poderiam sair ele bebia.