A Colher de Pedreiro

Mais um dia saindo daquela caixa de ferramentas para as mãos hábeis de um profissional cuja função é no mínimo curiosa: utilizar o vácuo do universo para transformá-los em espaços que servirão para as mais variadas atividades desenvolvidas pelos seres humanos, inclusive morar.

- “Quer dizer então que a função de um pedreiro é parecida com a de uma divindade, utilizar o vácuo sideral para criar locais habitáveis de onde se possa progredir!?” - pensou a colher de pedreiro.

Não sabia disso até então, também, ao lado de colegas que pouco se importavam com essas questões filosóficas, cujo único pensamento era executar bem suas funções como: alinhar e aprumar paredes ou jogá-las ao chão, misturar cimento, areia, dependendo da região até arenosa, esquadrejar, martelar e uma infinidade de variações...

Passou a refletir...

O que, obviamente em se tratando de questões filosóficas, suscitou outra carga de questionamentos existenciais tendo como mote sua atuação profissional.

- “Seria possível executar por conta própria minhas funções, ou ficarei sempre a mercê das decisões do pedreiro? Desde eras passadas que os humanos utilizam materiais disponíveis na natureza como extensões do seu corpo, capazes de realizar ações que um corpo de carne não é capaz, e que dá-se o nome de ferramentas. Tendo determinado inclusive um período histórico da humanidade, em que se descobriu que a pedra poderia ser lascada e poderia ser utilizada como ferramenta. E como era a vida dos seres humanos e suas refeições antes dos talheres”.

Absorta em pensamentos, a colher fez uma viagem ao seu passado remoto, e lembrou de seus ancestrais. Inevitavelmente passou a questionar a si mesma, de onde veio, o porquê lhe dera um nome de um talher? Já que vem do grego o termo kokhliárion, pois passaram a usar a concha do caracol para ingerirem alimentos líquidos, a qual eles chamavam de kokhlías. Isto é, seu ancestral direto era uma concha. Por que então herdara tal nome se executa uma outra função?

A colher de pedreiro percebe então que, tal qual os seres humanos sua existência é rodeada de mistérios. A partir dessas reflexões nossa amiga colher inicia uma busca de si mesma. Ela pensa nas mãos hábeis do pedreiro o qual pertence no momento e do bom uso que dela é feita pelo mesmo, do cuidado que ele tem para com ela, limpá-la das impurezas e resíduos da construção civil, não deixá-la exposta muito tempo ao sol e etc... Todos aqueles cuidados paternais.

Entretanto, passa a pensar nas outras colheres de pedreiro que existem no mundo: se recebem o mesmo tratamento, se seus respectivos donos possuem a habilidade necessária para manipularem-nas e usarem todas as suas potencialidades de ferramenta... e outras questões que só quem é ferramenta entende. A partir daí percebe que existe uma interdependência entre a mesma e seu dono, um não realizaria o trabalho sem o outro, tanto a colher não é nada sem as mãos do pedreiro, como o pedreiro não é pedreiro sem sua colher. Se bem que eles possuem outras ferramentas, mas é nítido o papel de capitã do time desempenhado pela colher e como ficaria comprometido o resultado das obras sem sua participação. E fica feliz com isso. Contudo, percebe que seu dono não é igualmente feliz.

- “ O que lhe falta? ” - pensa ela. Porém, se nem o próprio o sabe...

A colher de pedreiro decide então que seu objetivo de vida é ser livre, ou no mínimo lutar por liberdade. O que seria paradoxal para tal ferramenta, visto que sua existência até esse momento consistia exatamente em construir muros e paredes circunscrevendo o espaço livre. E é exatamente por isso que toma tal decisão, “já que tudo no universo é espaço preenchido ou a ser preenchido” - pensa ela.

Observando que tudo ao seu redor era o vácuo sideral ocupado por corpo(s) material ou a ser ocupado, desde um copo de cozinha aos confins da via láctea. Decidiu que a partir daquele dia empenharia todas as suas forças para ser livre ou tornar livre todas as coisas, não o sabia como fazer, porém era uma colher muito decidida. E que iria contar com seu dono pedreiro para levar adiante seu “novo” objetivo de vida. Tentou conseguir a poio de suas colegas ferramentas, sem sucesso, todos se preocupavam exclusivamente em como desempenhar sua função o melhor possível, caso contrário seu dono as descartariam na próxima lixeira e comprariam outras novinhas para seus lugares.

Sozinha, a colher continuou a acreditar em seu sonho de liberdade e em como os momentos de ócio eram significativos para suas análises e reflexões, às vezes interrompidos pela brusca necessidade do seu dono em cumprir horários para sobreviver.

- “Como uma vida com tais imposições pode ser livre?” - pensou ela. Pensou ainda na condição do pedreiro que a comprara numa loja de materiais de construção, de como a vida daquele dedicado dono era análoga à vida de uma prostituta, considerando que naquele ramo de atividade profissional, as moças (e até crianças e senhoras) entregam e utilizam seus corpos para prestarem determinados serviços em troca de dinheiro pra sobreviver (e curtir também), e que isso não era muito diferente do que fazia seu dono, o pedreiro, a final ele voluntariamente disponibilizava suas habilidades de construção, sua força física (às vezes, nem tanto por conta do cansaço), em suma disponibilizava seu corpo por algumas horas em troca de um salário (dinheiro) para sobreviver (e curtir também, porque ninguém é de ferro). Qual seria a diferença então entre esses tipos de serviço? A moral? A dignidade? Quem sabe... - Indagou-se a colher.

Certo é que lhe intrigava o fato de seu dono, o pedreiro, ter a obrigatoriedade de todos os dias se entregar para tais tarefas que, via de regra a levava para ajudá-lo. A colher pensou então na sua condição, isto é, a de pertencer ao pedreiro, que voluntariamente obrigado, tinha que trabalhar e construir coisas, e por que estava construindo aquela coisa. Se referia a obra na qual seu dono era um dos pedreiros empregados. Como não possuía o dom da fala e da comunicação restava à nossa sagaz filósofa pensar.

Nessas reflexões, ela percebe que sequer sabia que construção era aquela na qual estava sendo utilizada, observa ainda que seu dono pedreiro também não tem muita noção de que obra era aquela, sabia que era um enorme prédio, e passava seus dias (com a ajuda de sua colher) a levantar paredes, alinhadas e aprumadas, a rebocá-las, a fazer o contrapiso e outras coisas com a ajuda também de todas as outras ferramentas.

Ela nota que vira e mexe aparece um outro homem que aponta o que precisa ser feito, o que precisa corrigir, ou seja, de que forma seu dono deve executar o trabalho, e percebe que ele o chama de mestre de obras, que quando questionado pelo pedreiro sobre algum aspecto da obra, o mestre de obras diz que ele, assim como o pedreiro só cumprem ordens e têm que seguir o projeto do engenheiro, e que quando ele o engenheiro pensa em algo ele precisa da autorização do seu superior o dono da obra e este é a pessoa que manda nele, e consequentemente, manda no seu dono, que consequentemente a faz (nossa amiga colher) executar os serviços.

Ela pensa consigo se não seria justo todos os que vão fazer parte da construção participarem das reuniões sobre o projeto, todos estarem a par de todas as etapas e aspectos da obra, mesmo que não os compreenda ainda. A colher de pedreiro nota então que tais aspectos não são revelados ao engenheiro, que por sua vez, omite outros tantos aspectos ao pedreiro e ele por sua vez executa com destreza suas funções, usando-a habilmente para tal, se contentando com seu salário periódico e com sua condição de vida um pouco melhor. Contudo, ambos mantêm todo seu empenho em suas tarefas. O pedreiro dando o seu melhor e sendo reconhecido pelos seus serviços, recebendo até aumento salarial, a colher querendo ser livre, sonhando com liberdade, entretanto não deixando de dar o seu melhor naquela obra todos os dias.

Até que um dia, chegou ao fim a construção, sabia ela que há algum tempo os serviços do pedreiro naquele local havia se findado, dando lugar aos pintores, paisagistas, decoradores, bem como outras ferramentas a executarem outros serviços. Num belo dia de sol, ouviu seu dono comentar com outra pessoa que iria para o evento de inauguração da construção na qual trabalhara, e o viu sair todo arrumado deixando-a na caixa de ferramentas.

Após algumas horas, como o rádio tinha ficado ligado, ela que ainda não abrira mão do seu sonho de ser livre e lutar pela liberdade e de como são tratados aqueles que lutam por liberdade, por transgredirem leis que não criaram, percebeu que era uma transmissão ao vivo do local onde trabalhara com seu dono nos últimos tempos, foi então que ouviu do seu espaço dentro da caixa de ferramentas, a notícia da inauguração do mais novo prédio do Estado que o governador tinha recém inaugurado: a Prisão Federal para transgressores da lei.

Petrus Paulus