O Mistério da Areia

O chamam de O Andarilho.

Dizem que vaga pelas Terras Áridas sugando o restante de milagre do corpo dos que encontra em seu caminho. Alguns, dizem que já viveu muito; desde antes da Grande Seca. E é por isso que conhece os segredos da alquimia: transformar areia em milagre. Mas eu sei a verdade. E a verdade de como me tornei O Andarilho é um pouco menos fantasiosa. Não, não nasci antes da Grande Seca, quando o milagre corria por canos diretamente para o abrigo das pessoas. Quando o milagre dos céus ainda não era venenoso. Nem eu, nem meus pais, nem meus avós.

Eu nasci na Carcaça. Um lugar cheio de...carcaça. Dizem as lendas que essas gigantescas estruturas de metal costumavam flutuar em quilômetros e mais quilômetros de milagre. Hoje, servem de abrigo contra o sol e as tempestades de areia. "É tolice pensar nisso", meu pai dizia. O pobre coitado trabalhava em período integral coletando sucata na rodovia Norte-Sul pela mineradora Barro Santo. Em troca, lhe davam um pouco de ração e milagre, que acabava no mesmo dia. Minha mãe, assim como todas as mulheres da Carcaça, eram obrigadas a parir. A família tem direito apenas ao primogênito. "Malditos. Ganham os braços e o leite". Não me lembro dela. Como muitos outros, meus pais tentaram esconder a gravidez, mas obviamente só conseguiram até certo ponto; barriga grande é um atributo incomum.

Com 8 anos eu já tinha idade suficiente para trabalhar n'O Poço. Uma imensa cratera a poucos quilômetros da Carcaça. Era ali que pequenas mãozinhas como a minha cavucaram a terra, até se transformar nesse imenso poço. Coletávamos sucata e qualquer outra porcaria que pudesse ter valor comercial. Trabalhávamos ali, até os 13 anos, supervisionados por alguns adultos de 16. Diziam ser o "treinamento" para a rodovia. Em troca, nos davam milagre ao entrar e ao sair e mais um extra, caso o desmaio fosse comprovado. Com uma semana de trabalho n'O Poço e meus pés e mãos já estavam em carne viva, mas como eu passava o dia todo fora do abrigo, o que meu pai ganhava começou a durar um dia a mais. Isto, somado com a sua logística de racionamento, nos tornou diferentes. Mais corados. Mais saudáveis. Mais.

Veja bem, ninguém estoca nada na Carcaça. Era um local de decrépitos, carcaças humanas que eram burras demais para morrer. É claro que nossa nova situação chamou atenção. Segundo a lógica de meu pai, quanto mais saudáveis, melhor trabalharíamos. Isto com certeza chamaria a atenção da Tríade, o que aumentaria nosso valor e consequentemente, estaríamos fora daquela merda toda. Mas como eu disse, ninguém estoca nada na Carcaça. Uma noite, logo após o apagão, ouvi gritos logo atrás da Carcaça 3, abandonada no momento por "risco iminente de desabamento". Até os animais evitavam aquele lugar. Juntando a preocupação com a demora de meu pai em voltar para nosso abrigo com os gritos da 3, não tive outra opção senão ir dar uma olhada. Meu coração batia no peito como quem quer contar um segredo. Um segredo óbvio; tem algo errado acontecendo.

Eu lembro como se fosse ontem. Cheguei tarde demais; apenas para ver

o corpo de meu pai jogado ao chão. Eu poderia dizer que o encontrei quase morto, mas esse era o estado natural de todos na Carcaça. Eu o encontrei em seus últimos minutos e se as coisas não tivessem ocorrido assim, O Andarilho jamais existiria. Este é o meu paradoxo de azar ou sorte.

MIHELL
Enviado por MIHELL em 05/03/2021
Reeditado em 17/01/2022
Código do texto: T7198885
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