O pecado nativo

O sujeito me ofereceu duzentos e trinta reais. Olhei o dinheiro, fingi que era muito e meti no bolso. No meio do caminho, parei mais uma vez para olhá-lo: uma nota de cem e três notas de dez.

O filho da puta me havia roubado.

Voltei lá, disposto a cometer o pior dos crimes, saquei a peixeira e imprensei o cabra na parede. Meti-lhe a mão duas vezes na cara, para aprender a respeitar homem. Ele ficou lá, estendido ao chão, cheio de gente em redor. Fui-me embora. É claro que, antes de ir, peguei o restante do dinheiro de volta.

Depois de andar um pouco na cidade, parei e meti novamente as mãos nos bolsos. Me surpreendi agora com três notas de cem e três de trinta. Enganei-me e, de graça, mas sem arrependimentos, esbofeteei seu Zé. Não devolvi o dinheiro – decidi que os cem a mais seriam fruto do meu tempo.

Voltei para casa, guardei minha proteção – a faca que eu carregava para cima e para baixo – e sentei-me no sofá. Decidi fazer um café forte. Enquanto fazia o café, a memória pregava-me peças, me fazendo rememorar nostálgico a minha infância. Meu pai, de um lado do quintal, cortando as mudas de erva-cidreira, e minha mãe do outro, na cadeira de balanço, com os olhos tristes e marcas no rosto – frutos de uma surra recebida na noite anterior.

Meu pai cortava as plantas como se descontasse as mágoas da vida. Cortava-as com força, as mãos fazendo movimentos para esquerda e direita; e eu observando esse leve movimento com os olhos. Esquerda, direita, as plantas voando, e minha mãe chorosa no canto.

Queimei o café.

O fogo subiu demais e nem me dei conta. Fui pegar um pano para limpar e bateram à porta. Era o Zé. Trazia consigo não um, mas dois amigos com sangue nos olhos: como se a dor de zé fossem as suas próprias.

Apanhei ali mesmo, na sala de casa, enquanto meu cachorro, o caramelo, latia sem parar. Nem pensei em mim, apenas nele.

Era um bom cão o caramelo.

Zé, achando pouco a hemorragia que me causara, ainda levou junto o caramelo. Levou-o para o céu dos cachorros. Até hoje imagino-o junto de Baleia, brincando no céu a caçar os préas gordinhos e rasteiros que acolá residem. Me conforto porque sei que no céu dos cachorros, mais do que aqui, a barriga sempre estará cheia.

O jeito foi vingar-me de Zé.

Duas semanas, três dias, e algumas horas depois, agora recuperado da surra e das bonitas duras que me fustigaram, catei a peixeira no pé da cozinha e fui ao bilhar acertar as contas.

O cabra havia acabado de encaçapar duas bolas; e eu, de canto, só matutando para dar o bote – fiquei até com pena, o sujeito tinha uma expressão feliz, fruto das vitórias da noite. Então lembrei-me de Caramelo e não teve jeito: meti-lhe três punhaladas certeiras nas costas e o moço caiu feito um pacote no chão.

Na memória, só pensava em meu pai, esquerda e direita, com raiva, com força, transferindo dor para tirar-lhe as próprias.

E minha mãe no canto, chorosa que só ela.

@joandersonmarinho