Com destino

Naquela tarde Pietra resolveu romper o cerco no qual estava submetida há quase 1 ano. Andava cansada de tantos protocolos para conter a Covid-19 no Posto de Saúde, onde exercia com maestria a função de Auxiliar de Enfermagem. Estava com 38 anos e já não mais dormia as 8 horas recomendadas, seu corpo doía e a cabeça parecia estourar quando chegava ao final do expediente. Além disso, tinha que segurar a sua língua felina toda vez que um cidadão a feria com palavras. A pandemia desestabilizou, na sua grande maioria, o emocional das pessoas. Vinha tentando contornar toda a situação, mas não era fácil, já que tinha uma personalidade complexa, alternando humores. Sempre demonstrou uma imensa insatisfação por não ter conhecido o pai, mesmo tendo um padrastro que a criou com muito amor.

Ao invés de seguir para casa, seguiu em direção ao interior, não sem antes ligar para o marido e solicitar que chegasse em casa mais cedo para atender Marina, a filha de 12 anos.

Ao sair da cidade e entrar na estrada de terra iniciou a contemplação dos morros verdes que circundam o distrito no qual sua mãe nasceu. A sensação era de que o lugar a havia chamado, pois nenhuma programação havia sido feita quando da sua saída do Posto.

Chegando ao distrito vislumbrou o casarão caiado de branco que ainda pertencia à sua família. Parou e agradeceu por tudo o que até então tinha aprendido.

Seguiu para encontrar-se com o rio que circunda o lugar. O sol já estava baixo mas, mesmo assim ela desceu do carro e arriscou molhar os pés. Subitamente ouviu um barulho. Assustou-se. Olhando para o lado deparou-se com um homem mal vestido, com olhar caído e barba branca rala.

Com a voz embargada falou: quem é o senhor?

A resposta veio em seguida, em tom baixo: Sou Antonio, o dono deste lugar.

Após passar o susto e dialogar um bom tempo com Antonio, Pietra entendeu perfeitamente que ele tinha leves problemas mentais e realmente sentia-se proprietário do lugar, a ponto de levá-la à uma choupana que servia de seu refúgio. Ao redor, tudo limpo e até mesmo alguns vasos com temperos plantados.

Como a noite já começava a cair, Pietra despediu-se dele e prometeu retornar na próxima semana para levar-lhe alguma comida e roupa, ao que ele agradeceu.

E assim fez. Passada 1 semana lá estava ela novamente na beira do rio, encontrando-se com Antonio em pouco tempo. Sorridente ele se aproximou e, de pronto, questionou-a do porquê da sua atenção, já que passara a vida mendigando absolutamente tudo, sem obter muito êxito. Era visível a sua satisfação ao tê-la ao lado. Ficou feliz com a cesta básica e as roupas recebidas de Pietra.

Na saída Pietra solicitou a ele algum documento para que pudesse cadastrá-lo na Prefeitura para receber algum auxílio. A ela foi entregue uma carteira de identidade surrada, parecendo muito mais velha do que a sua própria idade. Entregou-a no Serviço de Assistência Social da Prefeitura.

Meses depois foi chamada para um retorno. Ficou feliz ao tomar conhecimento de que Antonio receberia um auxílio mensal e, além disso, um acompanhamento psicológico no local, já que não havia possibilidade de deslocamento até a cidade.

Tranquilizou-se. Meses após foi procurada pela psicóloga que o atendia clamando para que ela fosse vê-lo no hospital, já que ele havia contraído a Covid-19, superado e, infelizmente, ficado com sequelas no fígado, graves o suficiente para não deixá-lo vivo por muitos dias.

Chegando ao hospital Pietra não mais conseguiu vê-lo. Encontrou uma enfermeira na porta do quarto com a carteira de identidade dele na mão. Pietra providenciou o funeral e ficou com o documento. Anos mais tarde soube, através de sua tia paterna, que o nome de seu pai era Antonio e que, ao saber que não seria aceito pela família, na época muito abastada, largou-se na vida, possivelmente pelas beiras de um rio.

Escrito na Oficina "Provocações" da Pragmatha Editora - Módulo 01

Rosalva
Enviado por Rosalva em 25/02/2021
Reeditado em 04/05/2021
Código do texto: T7192765
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