LIAR, O MENTIROSO

A Vila de Matãozinho, há muito tempo estava esperando um novo pároco para sua paróquia, pois o último que prestara serviço religioso àquela comunidade fazia seis meses que houvera falecido de uma morte súbita, situação que até hoje seus fiéis não entenderam, afinal era um jovem sacerdote recém saído do seminário. Corpo atlético, amante dos esportes radicais, motivo para desconfiança de certos grupos conservadores, no entanto era muito requisitado a aconselhar os jovens daquele local. As pessoas mais “maduras” o olhavam com desdém devido sua “inexperiência” no púlpito, ele apenas sorria quando questionado acerca de seu conhecimento profundo do livro sagrado. O bispo prometia, mas nunca cumpria em preencher tão importante cargo vacante, pois argumentava a falta de vocações sacerdotais nos dias atuais. Em detrimento deste argumento a comunidade continuava a penar pela falta de um guia espiritual. O jeito era se contentar com as rezas de dona Delícia e da jovem Verity que se revezavam aos sábados no entardecer quando as luzes da cidade acompanhavam o pôr do sol.

Certo dia, estacionara um táxi defronte a casa paroquial saindo de seu interior um jovem senhor levando em sua mão uma pequena valise de couro preta. Ele trajava uma calça de linho preta, sapatos religiosamente engraxados que o seu brilho refletia a quem dele se aproximasse, uma camisa preta com colarinho branco duro e guarnecendo sua cabeça, um vistoso chapéu panamá. O desembarque do desconhecido chamara a atenção da comunidade, mas logo perceberam tratar-se de um “sacerdote”. Dona Delícia juntamente com a jovem Verity foram recebê-lo entusiasmadas, convictas de que o seu bispo finalmente cumprira a promessa de enviar um sacerdote para aquela paróquia carente de missas, confissões e batizados. Somente as duas que se propunham em realizar novenas para os pobres cristãos tementes a Deus. O desconhecido se apresenta como padre Liar que viera de uma comunidade distante para suprir a vacância deixada pelo pároco anterior, apesar do longo tempo de espera dos fiéis daquela vila.

Após as devidas apresentações, dona Delícia e Verity, portadoras da chave da casa paroquial, apresentam o local para o novo pároco. Devido ao tamanho da casa, em dez minutos padre Liar conhecera todos os cômodos. Colocara sua valise sobre a mesa em seguida dispensa as anfitriãs argumentando necessário um descanso da longa viagem, mas que no dia seguinte as nove horas da manhã gostaria de se reunir com as duas a fim de conhecer o cotidiano daquela comunidade. Na missa daquele domingo, gostaria de ver a igreja lotada de fiéis para que todos se conhecessem e se sentissem protegidos. Dona Delícia assumira o compromisso de organizar a ida de todos os fiéis. Estava eufórica com a ideia de terem uma missa festiva, diferente das demais. Enquanto isto, Verity se comprometia a assessorá-lo na secretaria paroquial, serviço que sempre fizera com maestria junto ao antigo padre, motivo do qual nascera uma “grande” amizade entre ambos causando profundo “sofrimento” na jovem Verity, a sua precoce morte.

O tempo foi passando e a comunidade cada vez mais integrada a paroquia. Padre Liar frequentemente recebia convites para um almoço, um café da tarde, inclusive para jantar. Dona Delícia vez e outra o levava a sua casa para a ceia das dezenove horas despertando curiosidades e interrogações por parte de vizinhas bisbilhoteiras, em especial as irmãs Santana, evangélicas convictas, críticas ferozes da Santa Madre Igreja. Verity, por trabalhar na secretaria, quase sempre acompanhava o vigário no almoço da casa paroquial, isto quando ele negava um convite de alguma bondosa fiel. O laço de amizade entre o padre Liar e a jovem Verity crescia tanto quanto nos tempos do falecido padre, onde as decisões paroquias sempre se permeavam de alguns pitacos de sua secretária. Dona Delícia cheia de boas intenções tentava influenciar nas decisões, porém o padre sempre desconsiderava argumentando de que cada qual no seu quadrado. Humildemente dona Delícia acatava-o sem levantar qualquer argumento, afinal ela já tinha sua parcela de contribuição na igreja, catequisar as crianças e os idosos em sua catequese dominical as dez horas após a missa.

Tudo corria bem, até quando Ambrósio, filho do agricultor Jorge Henrique, viera visitar a vila trazendo boas notícias da cidade. Ambrósio era um jovem seminarista que há muito tempo não visitava seu pai devido os afazeres no seminário. Ele fora enviado pelo bispo para dar notícia de que no próximo mês finalmente ele mandaria um novo sacerdote para aquela humilde vila. Que todos preparassem a festa, pois no dia 23 de abril, dia de São Jorge, o padroeiro da comunidade, padre Truth iria assumir aquela paróquia. Quando a dona Delícia ouviu de Ambrósio tal notícia, caiu em polvorosa. Correu para a casa paroquial a fim de certificar o que estava ocorrendo, afinal o padre Liar estava há seis meses exercendo seu sacerdócio com maestria, isento de qualquer suspeita. O povo estava contente com seus sermões, é verdade que as vezes ele exagerava se utilizando de palavras chulas, mas o povo já estava acostumado. Ele fizera uma revolução no ritual da missa que caíra no gosto popular. Havia um grupo de beatas, que pensavam se ele não estava sendo muito profano, mas por outro lado ele dava atenção a todos que o procuravam para orientar em sua fé. Nisto ele era tiro na queda, diziam algumas senhorias. Após a conversação saiam da casa paroquial “satisfeitíssimas” e com vontade de retornar para mais uma prosa agradável.

Ao chegar à casa paroquial, dona Delícia indaga a jovem Verity se o padre Liar se encontra em casa, pois deseja muito conversar com ele, porém recebe a resposta de que ele fora chamado urgentemente para visitar um parente muito doente, mas que no sábado à noitinha estaria de volta para rezar a missa de domingo. Verity percebendo o nervosismo de dona Delícia indaga o que está acontecendo, pois nunca a vira com tamanha palidez. Ela pede um copo de água, senta-se na cadeira a sua frente relatando toda a conversa que tivera com Ambrósio, jovem este que Verity não conhecia. Entre tantos argumentos e contra argumentos decidem ligar para o bispo a fim de esclarecerem um possível “mal entendido”. Para a tristeza de ambas, o bispo confirma a história, porém pede mais detalhes deste curioso padre Liar. As duas ao telefone relata toda a história de como chegara na comunidade, sua simpatia para com todos, as mudanças ritualísticas... No outro lado da linha o bispo ouvia cada frase dita, tentando conjugá-las dentro de um contexto lógico, diante de tanta aberração vinda das duas, decide abortar a conversa indagando que elas fossem na delegacia e contassem ao delegado toda a história nos mínimos detalhes, pois tratava-se de um impostor e que no dia seguinte estaria na comunidade para resolver esta situação, levaria junto com ele, o advogado da diocese a fim de tomar as devidas providências.

Nervosas, as duas seguem para a delegacia, relatam nos mínimos detalhes toda a situação para o delegado que, atônito ouvia tudo e ia anotando o que era importante para iniciar uma apurada investigação. Finda a conversa, o homem da lei agradece o relato exigindo que no dia seguinte na chegada do bispo que o levasse a sua presença para discutirem o processo investigativo, pois, apesar de não ser um assíduo frequentador da igreja, não entendia como o impostor conseguira enganar toda uma comunidade sem levantar qualquer suspeita.

No dia seguinte toda a comunidade já sabia do golpe que havia sofrido. Para algumas beatas era coisa do capeta, estavam muito decepcionadas pelo trote, afinal algumas delas passaram a visitar o confessionário com mais frequência diante de tanta “compreensão e bondade” do padre Liar. Para outros fiéis mais racionais questionavam, porque nestes seis meses de sua presença na comunidade, o bispo nunca se manifestara, situação que nem sempre soara bem aos seus ouvidos. Alguns valentões planejavam uma tocaia quando ele retornasse à vila, se é que ele voltaria, pensavam alguns. Naquela noite que antecedia a visita do bispo, Verity lembrou-se de que no cofre da casa paroquial havia uma razoável quantia em dinheiro, fruto de uma polpuda doação do prefeito da cidade para a reforma e pintura do salão paroquial. Não conseguira dormir, tamanha fora a ansiedade para relatar ao bispo este importante fato já imaginando o que iriam encontrar em seu interior: nada.

Depois de toda a conversa que o delegado tivera com o bispo, os detalhes, as possíveis pistas para encontrar o falso padre, Verity finalmente comenta a respeito da doação, que deveria estar no cofre, porém as chaves dele houveram sumido junto com o impostor. O delegado apela para os préstimos de seu Ferrolho, o chaveiro da cidade, a fim de que abrisse o cofre e confirmasse a história de Verity. Infelizmente o que imaginavam havia acontecido, o larápio levara todo o dinheiro deixando um bilhete zombando da ingenuidade de todos. O bispo deu um chilique sendo socorrido por seu advogado, Verity caiu em choro e dona Delícia amaldiçoou o espertinho. Após uma longa perícia nos locais importantes, o delegado agradece a cooperação de todos, se despede prometendo prender o impostor o mais rápido possível. A conversa continuara entre o bispo, Verity, dona Delícia e alguns representantes da comunidade para definirem os próximos passos, porém o religioso não se conformava como a comunidade caíra no conto do vigário e em especial o roubo do donativo do senhor prefeito.

Findo o dia, o bispo juntamente com seu advogado se despede da comunidade prometendo ele mesmo trazer o novo vigário para assumir a paróquia no dia de São Jorge, porém desejava que os paroquianos fizessem uma bela festa de recepção para que se apagasse da memória coletiva o vergonhoso mico que a igreja pagara diante dos fatos, pois era inadmissível e porque não dizer, imperdoável o que ocorrera. Dá uma passada na delegacia a fim de se despedir do delegado reforçando ao mesmo, certa urgência para a solução deste caso pitoresco, no que, o delegado promete o mais rápido possível, pois já tem algumas pistas na sua prancheta de estudos.

Passados trinta dias, dona Delícia, Verity e o novo vigário, padre Truth, são chamadas à delegacia a fim de identificarem um possível suspeito da operação conto do vigário, pois assim a nomeara o seu delegado para as investigações. As duas tiveram dificuldade em reconhecê-lo, pois o suspeito apresentava uma vasta barba preta, porém um pequeno detalhe fora primordial para matar a charada. Dona Delícia lembrara de que o impostor tinha tatuado no lado esquerdo do seu pescoço uma bela borboleta de cor azul. Comenta ao delegado pedindo que ele o faça tirar a blusa para certificar-se de que era mesmo o impostor. Esta tatuagem passara despercebida aos olhares das pessoas. Devido seu tamanho, o colarinho branco de sua veste clerical ocultava muito bem aquela obra de arte, somente dona Delícia é quem tinha conhecimento, e ela guardava este segredo. Desvendado o caso, o impostor é preso e julgado não só por este crime, mas outros golpes que vinha aplicando em outros lugares. Sua ficha criminal era longa, sempre se envolvia com alguma mulher em especial aquelas carentes de amor e sedentas de prazer. Sua lábia convencia-as de que, ele era a pessoa certa para suprir suas “carências” e com isto tirava proveito de sua ingenuidade ou seria “necessidades”? Como representante da igreja, padre Truth encara de frente o falso padre Liar, olha em seus olhos profundamente e questiona: Desde quando a mentira vence a verdade? Liar concorda com Truth. Lembra da serpente que enganou a Eva, e diante de sua atitude, a mentira passou e continuará a ser perseguida pela verdade até que ela perceba o mal que faz para a sociedade.

Padre Truth enviara seu relatório para o bispo contendo os mínimos detalhes da investigação assinado pelo delegado. O bispo ficara feliz em saber que o impostor fora preso, porém, uma angústia abatera sobre ele ao constar no relatório de que o dinheiro não fora recuperado, pois o larápio houvera gastado em noitadas de luxúrias. Padre Truth após fechar seu breviário de orações, preparando-se para dormir se põe a pensar: “graças a Deus tudo fora resolvido. O impostor está preso, vai pagar pelos seus atos conforme a lei do homem, porém o seu perdão cabe somente à Deus, que ele seja piedoso com seu filho. Se não fosse a lembrança de dona Delícia a respeito da tal tatuagem nada estaria resolvido”. Estaria a mão de Deus agindo sobre aquela mulher, questionava ele. Mas... como somente ela sabia da borboleta, pois, segundo Verity, ele nunca tirava a camisa clerical? Sem chegar ou quase chegar a uma conclusão dirige-se à sua cama refletindo: Deus escreve certo por linhas tortas...

Valmir Vilmar de Sousa (Vevê) 15/01/21

valmir de sousa
Enviado por valmir de sousa em 23/02/2021
Código do texto: T7191196
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