Dona Candinha
“Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?” (Hannah Arendt)
Dona Candinha... Dona Candinha... Dona Candinha... Dona Candinha isso; Dona Candinha aquilo. Foi Dona Candinha que me ajudou. Peça pra Dona Candinha te ajudar. Se eu fosse você, falava com Dona Candinha. Dona Candinha te empresta. Leva pra Dona Candinha que ela cuida. Dona Candinha resolve. Dona Candinha é um amor de pessoa. Se Dona Candinha não for pro céu, ninguém mais vai. Dona Candinha... Dona Candinha... Dona Candinha...
Do padre ao açougueiro; da professora ao gari; do jornaleiro à farmacêutica; do vigia de carros à prefeita; do carteiro à atendente de caixa do supermercado; do coveiro ao motorista de ônibus; do médico ao entregador de gás; do traficante ao policial; do morador mais antigo ao que chegou ontem, todos, absolutamente todos, conheciam Dona Candinha, e a maioria tinha por ela verdadeira devoção. Residindo no lugar há mais de cinquenta anos, a velhinha era um fenômeno de prestígio e popularidade. Crecheira, parteira, assistente social, juíza de paz, líder comunitária e cuidadora de gatos e cachorros abandonados, maltratados, atropelados. Onde houvesse um necessitado, um problema, um conflito, lá estava Dona Candinha.
Quando a esposa de Juca Pedra descobriu que ele andava, como diziam, “fornicando com uma sirigaita do cabaré de Florastina”, quem foi lá, a pedido dele, resolver o entrevero?
- Minha filha, Juca é um homem bom, um pai de família dedicado que não deixa faltar nada dentro de casa. Além do mais, o povo é falador, você sabe.
- Dona Candinha, a senhora quer que eu suporte calada uma traição?
Diante da relutância da moça, a velhinha sacou sua inseparável arma, abriu-a em Coríntios 7:10,11 e fez o alerta ressaltando no tom de voz cada sentença ali proferida.
- “Todavia, aos casados mando, não eu mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido. Se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou que se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher.”
- Dona Candinha...
- Minha filha, é a lei de Deus. Sou apenas uma mensageira de Seus propósitos.
Quando Oliveira se viu aperreado sem um tostão para comprar o caixão e pagar a funerária, quem bateu de porta em porta juntando moedas para realizar o enterro de Dona Bilu?
Quem fez vaquinha na comunidade para dar abrigo e comprar remédio e comida para oito crianças que tiveram a mãe internada depois de ser surrada pelo marido enciumado? Dona Candinha, evidentemente! Ostêncio, o pai agressor, encurralado pelos cunhados armados de paus e pedras, ingeriu chumbinho e morreu espumando pela boca, trancafiado no banheiro.
Quem gerenciava a horta e o pomar comunitários, muitas das vezes tirando dinheiro do próprio bolso?
A prefeitura cedeu o terreno e os moradores se uniram para executar o projeto de Candinha. Os aposentados Tião e Natinha assumiram o comando do cultivo e da colheita. E a plantação era uma lindeza de se ver. Tomates e pimentões viçosos; manjericão que cheirava ao longe; pimentas de dar água na boca; cenouras, beterrabas e rabanetes crocantes; alface e couve saborosíssimos... - Tudo orgânico, viu? Sem um pingo de agrotóxico, gostava de frisar a velhinha, explicando as propriedades terapêuticas de cada planta. A babosa cura queimaduras solares; o mastruz tem poder cicatrizante; o boldo e a hortelã são ótimos para o estômago; o endro aumenta a produção de leite materno; a salsinha reforça o sistema imunológico; a sálvia alivia dores de garganta; o tomilho, o alecrim, a arnica, a bertalha, a carqueja, a vergateza... E a lista não tinha fim.
Também não tinha fim o entra e sai de gente enchendo sacolas e deixando algum tipo de contribuição. A horta funcionava na base do escambo. Mesmo quem não podia doar ferramentas, adubo ou sementes ajudava levando resto de comida e casca de frutas e verduras para o sistema de compostagem.
No centro comunitário da cidade, Dona Candinha fez um curso de aproveitamento integral de alimentos. Agora ela ensinava fazer bife de casca de banana, bolinho de talos de hortaliças, assado de cascas de chuchu, creme de folha de couve-flor, suflê de casca de beterraba e, entre outras delícias, feijoada verde. No início, encontrou muita resistência. Mas, com calma, foi ganhando simpatizantes. A ideia era evitar o desperdício e incrementar a cozinha de uma comunidade carente de tudo. Deu certo e a velhinha aumentou seu prestígio perante os moradores. Aumentou também o passaredo.
Agora o bairro estava repleto de aves das mais variadas espécies e cores. Atraídos pelo doce das frutas do pomar e pela copa florida dos ipês, jacarandás, quaresmeiras, aroeiras e sibipirunas que Candinha e seus seguidores espalharam por todos os cantos, chegaram sabiás, sanhaçus, cambacicas, rolinhas, bem-te-vis, dando um toque bucólico ao lugar onde antes só se via concreto e antenas de TV.
- Essa plantinha aqui ó se chama fruto do sabiá. Só ela atrai mais de 40 espécies de pássaros, apontava feliz a velhinha.
Foi assim que Candinha se tornou educadora ambiental. Para impedir que a molecada com seus bodoques continuasse abatendo os passarinhos, Candinha desenvolveu um trabalho social de conscientização sobre a necessidade de se preservar a natureza. De casa em casa, com sua voz pausada e sua paciência, ela fez com que a meninada passasse de predadora a protetora dos bichinhos. Essa era Dona Candinha.
Quem fazia parto, organizava novenas, auxiliava o padre antes, durante e depois da missa, realizava curso de padrinho e encontro de casais, coordenava as quermesses, fazia mutirão para tapar os buracos do muro da igreja e da escola? Quem, durante mais de vinte anos, com doações e a pensão do marido falecido, manteve uma creche em casa assistindo centenas de crianças? Candinha, claro! Quem mais poderia ser?
Sim, é verdade: Dona Candinha nem sempre resolvia tudo. Mas jamais se permitia não tentar.
Foi assim quando Neto Gasolina bateu a sua porta em total desespero. O frentista largara às pressas o posto onde trabalhava porque soube que seu “menino mais novo” tinha caído nas mãos de Pato Torrado, traficante que comandava geral o comércio de drogas na comunidade e região vizinha. Todos ali sabiam que Pato não perdoava quem roubava nos arredores chamando a atenção da polícia.
Na tarde do dia anterior, policiais haviam feito uma incursão para prender o ladrão que, passando pelo telhado, furtava pequenos objetos em casas vazias, enquanto os moradores trabalhavam. Os tiras não encontraram Bocão - com os bolsos cheios de crack, o moleque passou dois dias enfiado no mato feito um bicho alucinado -, mas, “para não perder a viagem”, encheram de bolacha os aviões de Pato Torrado e ainda “apreenderam” a droga e a grana encontrada com eles. O comandante da boca surtou. Reuniu a malandragem e botou o furgão velho na rua. Mais bem informado do que a polícia e com gosto de sangue na boca, não demorou a encontrar quem procurava.
Do trabalho, Gasolina seguiu direto à boca de fumo. Já no portão, foi barrado pelos soldados do chefe.
- Diga a Pato quanto ele quer pra soltar meu menino.
- Tem filho seu aqui não, seu Gasolina. Acho melhor o senhor vazar na braquiária, alertou Vareta, o vigia da boca.
- Deixa eu falar com Pato. Quanto é que meu menino deve? Eu pago.
- Vai vender a casa pra me pagar, Gasolina? – interrogou o traficante-mor, vindo dos fundos do lote.
- Eu moro de aluguel, não tenho casa. Mas posso pegar um dinheiro emprestado...
- Ahhhh, Gasolina, some daqui, seu quebrado do caralho. E avisa praquele moleque desaparecer da face da Terra, porque tu tá ligado que o bagulho é doido.
- Me disseram que você tá com meu filho...
- Some daqui, caralho! Dou dez segundos pra você vazar daqui.
Neto viu que Pato Torrado não estava brincando quando levantou a blusa e exibiu a nove milímetros na cintura. Se ficasse ali, seria apenas mais um nas contas do traficante. Saiu arrastando os pés. Impotente. Parou na equina sem esperanças. De repente, foi como se uma voz tivesse lhe soprado ao ouvindo. O frentista saiu em disparada. Sabia exatamente o que cada segundo perdido poderia significar.
Era sempre muito fácil descobrir o paradeiro de Dona Candinha. Gasolina foi encontrá-la no churrasco com que a vizinha comemorava o ingresso de mais uma filha na universidade. O que durante muito tempo foi impossível àquela comunidade, agora era real. – Não tão dando nada de graça, não. Isso é só nosso direito, historicamente negado. Entre fotos, beijos e abraços, discursava altivamente a caloura, referindo-se às cotas destinadas a estudantes de escolas públicas. De fato, ela não era caso isolado. A cada ano, o bairro conhecia novos universitários. O exemplo dos primeiros aprovados ia motivando os mais novos, criando um ciclo virtuoso que mudava a configuração de uma população acostumada a fornecer mão-de-obra barata aos ricos e à classe média, que antes praticamente monopolizavam o ensino superior. Agora, Dona Zizinha, de uma família na quinta geração de empregadas domésticas, era a mãe da farmacêutica; o filho de Zulu, motorista da fábrica de cimento, era professor da rede estadual de ensino; as duas filhas de Matilde, diarista, eram fisioterapeutas; os filhos de Tetê, que vendia marmitas na central, estudavam agronomia e matemática; e o médico que visitava as casas exibindo um jaleco branco da secretaria de saúde era, simplesmente, o filho do vigilante da estação de trem. Havia, portanto, muita razão para comemorar.
A festa estava só começando quando um Neto Gasolina assustado sussurrou ao ouvido de Dona Candinha.
Vareta deteve, cuidadosamente, a velhinha no portão, enquanto Biloca corria para avisar ao chefe, que deduziu logo o porquê daquela visita. – Diga pra ela aguardar um instante, ordenou ele. E, uns cinco minutos depois, apareceu forçando um largo sorriso para disfarçar o nervosismo.
- Vovozinha, minha querida, a que devo a honra da sua presença, disse se fazendo de desentendido.
Pato Torrado e seus mais temidos comparsas tinham razão de sobra para admirar e respeitar Dona Candinha. Reconheciam seu papel na comunidade. Além do mais, ela fora visita assídua durante o tempo em que estiveram presos. Muitos dos aviões do traficante também, de uma forma ou de outra, sentiam-se gratos à velhinha. Ratinha e Biloca eram seus afilhados. Vareta, nascido prematuro, perdera a mãe ainda no parto, e foi na creche dela onde ficou toda a infância, enquanto seu pai trabalhava. Chicote veio ao mundo pelas mãos daquela parteira. Fadinha e Chocolate, ainda adolescentes, jamais se esqueceram dos presentes de Natal que Candinha distribuía na comunidade fazendo a alegria da molecada.
– Diga logo, Pato Torrado. Onde tá o menino?
A boca ficou em silêncio. Tensão. Mas o traficante-mor não perdeu a pose.
- Dona Candinha, entra aqui. Vem, vem, entra aqui, por favor. Veja a senhora mesma se tem filho de Gasolina aqui.
A velhinha vistoriou todos os cômodos. Chegou a abrir porta de guarda-roupas. Nada encontrou. Nem mesmo droga ela viu. A casa, inclusive, tinha a aparência de uma residência qualquer.
- Não encontrei não, Seu Gasolina, disse ela ao frentista, que espreitava de longe.
Mal Dona Candinha partiu, Pato Torrado reuniu um grupo de peso e botou o furgão na rua. Neto Gasolina saiu em disparada tentando alcançá-lo. Na esquina, o veículo parou. Pato desceu e arrastou a pistola. O frentista abrigou-se por trás de um contêiner de entulho e ficou escutando a bala zinindo no metal. Uma saraivada. Recado dado, o traficante embarcou e ordenou que o carro seguisse. Gasolina deu meia volta e correu pela rua de baixo, para não ser avistado. Quando, esbaforido, chegou à beira do rio, ainda viu o furgão pegando novamente a estrada. Lançou o olhar sobre a água imunda, espumenta, carregada de dejetos vindo das ligações de esgoto. O sol caía e o leque de raios multicolores embaralhava a visão. Um corpo boiava rente à margem. Um corpo franzino que Neto tantas vezes carregou no colo e ninou para fazer dormir.
Assim que soube, Dona Candinha iniciou uma peregrinação entre vizinhos e comerciantes arrecadando fundos para pagar o sepultamento.
- Esse safado surrou meu filho e tomou a bicicleta.
- Não dou um tostão. Peguei ele roubando na minha casa e meti a porrada. Ele quebrou minhas janelas na pedrada.
- Estuprou minha menina de doze anos.
- Mataram o desgraçado? Bem feito! Demorou!
- Gente, aquele infeliz era um filho de Deus e merece ser perdoado, respondia a velhinha diante das queixas dos moradores. E, ao fim do dia, dinheiro arrecadado.
Quem frequentava cadeias evangelizando os presos e visitava hospitais confortando os enfermos? E foi numa visita ao Hospital Central que Dona Candinha conheceu Meia-Lua.
A parada de ônibus estava lotada quando Altenamir, a quem todos chamavam Tição, chegou empunhando uma faca peixeira de catorze polegadas. A depender do movimento que fazia, a lâmina brilhava em contato com os raios do sol tornando-se ainda mais assustadora. Levou alguns segundos para que todos, ainda sonolentos, se dessem conta do que estava realmente acontecendo: tratava-se de um assalto. O ladrão exigia, sob as mais terríveis ameaças, a entrega de carteiras e aparelhos celulares. Na mão esquerda trazia uma mochila escolar de boca aberta, onde os produtos deveriam ser depositados.
- Vou meter a facada! Se esconder, eu meto a facada! Vamo, caralho! Vou meter a facada na barriga!
Ninguém duvidara.
Mãos trêmulas se apressavam em atender a exigência. Rapidamente a bolsa foi ganhando volume, e o ladrão antevia o resultado do saque. O negócio estava rendendo. A tensão natural do roubo já se misturava nele com uma sensação de felicidade. Faltava apenas aquela moça ali meio isolada do grupo, que, imóvel, assistia à cena. O assaltante deu três passos na sua direção apontando ameaçadoramente a faca.
- Tá esperando o quê, filha da puta! Vou meter a facada!
A moça, calmamente, enfiou a mão no bolso e puxou o aparelho. Os olhos do assaltante brilharam: um Future XL10, da TecStar. Só esse já valeria o butim e o vício estaria garantido por uma semana. A faca intimidadora vibrava frente à vítima. Ela encarou fixamente o assaltante. Ele brandiu a espada. Ela fez menção de entregar o telefone, mas, surpreendendo a todos, num movimento de risco, arremessou-o para cima na direção do larápio rastaquera. Desgraçada! Gritou ele enquanto, atrapalhado pela faca e pela mochila, levantava as mãos na tentativa de aparar o tesouro. Com a boca aberta e os olhos esbugalhados, deixou que a assaltada desaparecesse do campo de visão. Irado, tinha certo que tão logo impedisse a queda do seu prêmio maior, botaria as tripas daquela desgraçada no chão. Tudo muito rápido. A plateia assistia, incrédula. O telefone caía. Um corpo inadvertido tentava apanhá-lo. Outro corpo, como um compasso, girava em torno de si mesmo. As duas mãos tocando ligeiramente o solo davam sustentação ao tronco que se curvava, enquanto, num movimento de rotação, uma das pernas era lançada para trás em alta velocidade, varrendo a diagonal como uma hélice. Tudo muito simétrico. A enorme pedra de crack descia do céu; mãos ansiosas e desatentas em formato de prece. Um giro calculado de 360º.
Pegou!
O calcanhar atingiu violentamente a região situada entre a orelha e o encaixe da mandíbula esfacelando os ossos da lateral direita do rosto. Faca e mochila foram lançadas ao chão, ao passo que o assaltante desabou com um prédio dinamitado na base. A moça, calmamente, apanhou o telefone. No alvoroço para ter de volta seus pertences, as demais vítimas nem perceberam quando ela embarcou no primeiro coletivo que apareceu. Estatelado no chão, Altenamir ainda ganhou uma seção de bicudas que lhe afundaram o crânio, quebraram vários dentes e fraturaram algumas costelas. Os ônibus iam encostando, esvaziando o ponto. A faca e a mochila desapareceram. Os bombeiros prestaram os primeiros socorros e fizeram o encaminhamento para o hospital. O assalto foi gravado pelas câmeras da padaria ao lado. Aos jornais de sangue, o delegado exaltava as habilidades da capoeirista. - Nunca vi um negócio daquele. Deve ser ninja, dizia. Foi assim, em referência ao golpe recebido, que Altenamir deixou de ser Tição, apelido dado em função da cor de sua pele que o fez, ainda menino, abandonar a escola, e virou Meia-Lua.
Depois de cinco meses internado, sendo dois deles em coma, o paciente, enfim, recebera alta. Com um lado do corpo comprometido por uma hemiplegia, a fala embolada, banguela e a face deformada, Meia-Lua não tinha aonde ir porque seu pai, quando soube do ocorrido e do estado em que o filho se encontrava, vendeu o barraco e sumiu com a esposa e demais filhos. Saiu de madrugada, sem alardes. Dizem que foi se esconder no sertão alagoano. Durante todo o período em que esteve hospitalizado, Dona Candinha foi a única visita do enfermo. Os dois foram se conhecendo, se afeiçoando. A velhinha viu nele uma companhia. E mais que isso: alguém para cuidar do seu canil, que já contava vinte gatos e mais de trinta cachorros. Agora Meia-Lua tinha um novo lar, onde vivia recluso. Saía apenas para comprar a ração dos animais. O outrora marginal temido por toda a vizinhança virou o alvo preferido dos moleques que paravam o futebol e ensaiavam um gingado de capoeira toda vez que ele apontava na rua. O caso também era assunto para os adultos.
- Só Dona Candinha mesmo! Botar um bandido daquele dentro de casa, diziam uns.
- A lua tá pela metade, mas ainda ilumina, outros, aos risos, provocavam.
- Minha gente, Deus disse: fazei o bem e não olhai a quem, respondia a velhinha sem dar muita importância à língua alheia.
O fato de Dona Candinha acolher Meia-Lua e visitar e presidiários intrigava os vizinhos por ela mesma ter sido vítima de terrível violência, lá pelos seus cinquenta anos de idade.
Naquela noite, uma tempestade desabara sobre a cidade interrompendo o fornecimento de energia elétrica por algumas horas. Candinha e seu marido não viram quando três sujeitos pularam o muro nos fundos do quintal e invadiram a casa de armas em punho. Exigiam dinheiro e a chave do carro. Tudo foi entregue. Mas os ladrões estavam dispostos a outras atrocidades. Para tentar impedir o estupro da esposa, Seu Gervaniro, atracou-se com um deles. Os dois rolaram pelo chão até a punhalada certeira desferida por um bandido que veio em socorro ao comparsa. Os vizinhos nada ouviram porque não houve disparos. As sevícias só terminaram quando o dia amanheceu. Dona Candinha jamais falou sobre o estupro. À polícia, relatou apenas o roubo e a morte do marido.
Devido ao seu trabalho de evangelização de detentos, certa vez, a velhinha deparou com dois dos bandidos, que, no entanto, não a reconheceram. Ela orou com eles e para eles, assim como fazia com os demais.
Isso porque Dona Candinha perdoava; Dona Candinha sublimava; Dona Candinha acolhia; Dona Candinha relevava; Dona Candinha votava.
Tempo de política, como dizem. O debate estava de porta em porta mobilizando a comunidade. No dia sete de outubro, os eleitores iriam escolher o novo presidente da república. Dona Candinha era só entusiasmo. Seu candidato despontava em primeiro lugar nas pesquisas, indicando que bateria os adversários ainda no primeiro turno. Uma enorme onda de esperança e felicidade contagiava as pessoas, certas de que veriam, como mágica, o inferno transformar-se em paraíso. O herói estava a caminho e, do alto do seu cavalo branco, varreria o mal com um só golpe de espada. Não era um político, era um enviado de Deus. Um messias. Um ser mitológico. Os dias de tristeza, sofrimento, imoralidade e corrupção estavam contados.
A garagem da boa senhora foi transformada em comitê de campanha. Era lá onde aconteciam as reuniões, o planejamento das ações e a distribuição de material. Bandeiras, camisetas, cartazes, faixas, adesivos e melequinhas entupiam todos os cômodos da casa, encobriam o sofá, a estante e a cama, onde Dona Candinha, abraçada àquela parafernália, dormia beijando a foto do seu rei e salvador.
- É nós, Dona Candinha! Não tem pra ninguém! Arrocha, Dona Candinha!, gritavam os moradores quando a velhinha passava carregando sua bandeira.
A fama daquela militante foi se espalhando e chegou até aos ouvidos do candidato, que fazia campanha na região. Um comício ali fora agendado. A simples montagem do palco reuniu público de duas mil pessoas. Centenas delas já acampavam no local para garantir que estariam o mais perto possível do seu ídolo.
Na semana do maior espetáculo da terra, assessores do candidato procuraram Dona Candinha. Ele fazia questão de tê-la ao seu lado durante o evento. A notícia atravessou o planeta. A rua da velhinha lotou. Equipes de rádio e televisão disputavam espaço com gente de toda parte que agora queriam ver e tocar a criatura escolhida pelo iluminado. Vendedores ambulantes lucravam com a romaria formada no bairro. A prefeita e o governador, é claro, trataram logo de fazer suas visitas e estampar as fotos nas redes sociais. A nova pop star já não comia nem dormia. Não lhe restava tempo. Só dava entrevistas e posava para as câmeras.
Chegou o grande momento. Dona Candinha foi transportada num carro do corpo de bombeiros e escoltada por batedores da polícia militar e do exército. Não fosse assim, jamais conseguiria vencer a multidão e alcançar o palanque. O candidato a recebeu festivamente com um abraço longo e apertado. Ela se ajoelhou e beijou-lhe os pés. Ele sorria como um moleque. Quando a velhinha foi anunciada, a multidão, em êxtase, gritava seu nome: Can-di-nha! Can-di-nha! Can-di-nha! Ao fim do discurso, o candidato fez uma promessa.
- Dona Candinha, eu quero a senhora na minha posse. Não se preocupe. Não precisa fazer nada. Meus assessores virão aqui te buscar. A senhora vai assistir de camarote à posse do novo presidente do Brasil.
Êxtase. Êxtase. Êxtase.
Terminado o comício, uma enorme carreata se formou atrás do caminhão do corpo de bombeiros que levava Dona Candinha de volta para casa. No bairro, uma noite de festa, fogos e felicidade. Por volta de três horas da manhã, Candinha se recolheu. Providencialmente, Meia-Lua soltou uma dúzia de cachorros no quintal da casa. Fez questão de escolher os menos amigáveis. Só assim, a velhinha teria a garantia de algum descanso.
Por volta das vinte horas do dia sete de outubro, o país em peso estava ligado na TV, no rádio e na internet. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral iria apresentar oficialmente o nome do candidato eleito. Mera formalidade, diga-se. O mundo inteiro já sabia de quem se tratava. Toda a imprensa acompanhou a eleição e divulgou o resultado tão logo a última urna fora apurada. No entanto, os eleitores ansiavam pelo ato final que sacramentaria definitivamente a vitória. Um enorme projetor fora instalado em frente à casa de Dona Candinha.
Anúncio feito, a velhinha caiu de joelhos, mas foi imediatamente amparada. A multidão formada de parentes, amigos, vizinhos e candidatos a ergueu feito um troféu, e ela foi passando de mão em mão, carregada nos braços como um técnico de futebol vencedor da final de um campeonato mundial. Ela queria comemorar, mas não podia; queria falar, mas não podia; queria gesticular, mas não podia. Queria respirar, mas já não podia.
Quando, no dia 1º de janeiro, Jair Bolsonaro recebia a faixa de Presidente do Brasil, dona Candinha, há muito, descansava envolta na terra fria.