Entre anjos e demônios
O bipe dos equipamentos já nem era mais percebido por Júlio. Nos últimos tempos ia e voltava daquela cama de hospital tantas vezes que o pronto-socorro era quase uma extensão de casa. Conhecia todos os enfermeiros e enfermeiras e, naquela manhã, Judite estava de plantão. Gostava da mulher a quem chamava de senhorita e que lhe retrucava que era velha demais para ser chamada assim.
— É tudo uma questão de referência, senhorita. Comparada a mim, você é uma jovenzinha — dizia ele todas as vezes.
Era um homem idoso e viúvo, cujos filhos há muito se mudaram do Rio para seguir a vida com suas esposas e mais recentemente com sua neta, que havia visto poucas vezes. Mesmo precisando de ajuda nos últimos anos era teimoso e não sairia da Cidade Maravilhosa de forma alguma. Posicionamento que desagradava os filhos. Havia viajado o mundo como funcionário de uma grande empresa farmacêutica, e tinha a certeza de que o Rio de Janeiro era a cidade que mais gostava no mundo.
Sentia saudade de viajar, mas a doença lhe impedia de viajar com a mesma frequência de antes. Doença essa que por mais que os médicos lhe dissessem que não havia cura, como farmacêutico que era, havia se automedicado e ampliado sua expectativa de vida, segundo ele próprio.
Estava deitado como de costume. Não se lembrava muito bem dos últimos acontecimentos, apenas que havia tido algum problema e que os enfermeiros e médicos correram para lhe socorrer e ele havia desmaiado. Acordou em uma outra sala, diferente do quarto que estava acostumado. Uma luz forte sobre sua cabeça lhe ofuscava os olhos azuis. Tentou erguer o braço para proteger a vista, mas estava dormente, como acontecera muitas vezes nos últimos tempos. Logo o braço voltaria a responder. Virou o rosto e viu aparelhos diversos. Do seu lado um desfibrilador indicava que havia tido uma parada cardíaca. Continuou olhando ao redor para tentar se localizar.
Dois homens estavam no pé da maca. Um vestia uma túnica branca com asas nas costas, com uma aureola presa por um arame sobre a cabeça, que tinha uma peruca bem vagabunda loira de cabelos encaracolados. Era uma fantasia de anjo bem barata, daquelas que os foliões compravam só para dizer que estavam fantasiados no carnaval. Do lado oposto havia um outro homem também fantasiado. Este vestia uma túnica preta com gola alta e vermelha, usava uma tiara com chifres vermelhos e um tridente de plástico de baixa qualidade.
— É sério isso? — perguntou o homem usando a fantasia de diabo abrindo os braços para se referir as roupas.
— É assim que ele imagina a gente, respeite o homem — respondeu o outro, vestido de anjo.
— Eu não vou usar essa merda.
O homem despiu-se da fantasia, revelando uma calça jeans preta e uma camiseta do Iron Maiden. Tinha por volta de trinta anos, cabelos pretos e pele bronzeada. O outro, vestido de anjo, o copiou. Este usava uma calça branca, camiseta da mesma cor sem estampa e tinha um terço pendurado ao pescoço. Seu cabelo era castanho claro e tinha um rosto belo e tranquilizador.
— Quem são vocês? — perguntou Júlio, levantando o tronco com dificuldade da maca. — Não parecem trabalhar no hospital.
— Eu tenho cara de quem trabalha em hospital?
— Por favor, tenha mais respeito, ele está confuso — respondeu o homem de branco.
— Você morreu, tio. Eu e o anjinho aí viemos levar você.
— Mas... você... pelo amor de Deus, como você conta uma coisa dessas assim? — retrucou o homem de branco, indignado. — Que insensibilidade.
O homem de preto deu de ombros. Júlio tinha um grande ponto de interrogação estampado na testa.
— Do que vocês estão falando? Quem são vocês?
— Júlio, o que meu distinto colega quis dizer é que nós sentimos muito. Eu sou um anjo e ele um demônio. Nós viemos, porque, infelizmente, você fez a passagem, meu amigo.
— O quê?
Júlio estava atordoado. Aqueles dois homens eram estranhos e falavam coisas sem sentido. Primeiro apareceram com fantasias de carnaval e depois falando aquelas coisas. “Devem ser malucos que saíram do quarto do hospital e estão delirando, só pode”, pensou Júlio.
— Acha que somos loucos? — questionou o homem de preto, como se tivesse lido a mente de Júlio. — Você bebeu e fumou a vida inteira esperando uma velhice saudável e nós que somos loucos?
— Dá pra parar!? Dê tempo ao homem. Que coisa!
— Ah, tenha dó, o velho fica aí negando a realidade e você dando trela, por isso você demora pra fazer seu trabalho — disparou o homem de preto. — E faça-me o favor de sair de cima do defunto, tio. Isso me incomoda.
Júlio se virou e olhou para seu corpo imóvel. Como se sua alma tivesse descolado do corpo e ele estivesse sentado em cima de si mesmo, como um fantasma. O susto foi tamanho que ele se levantou e foi para o canto da sala com tanta agilidade quanto em seus tempos de juventude. Estava longe da maca e ainda assim seu corpo estava deitado inerte a sua frente. Era algo surreal.
— Que diabos é isso? — disparou Júlio, provocando uma careta do homem de branco.
— O correto aqui é demônio, tio. Diabo é o chefe — disse o homem de preto, espirituoso. — Mas você entendeu agora? Você foi para o saco, como pode perceber pelo presunto enrugado aqui na maca. Podemos agora ir direto ao que interessa?
— Espere, você é muito insensível.
— Eu sou um demônio, se eu fosse sensível eu seria você. Ande logo com isso.
O anjo balançou a cabeça em reprovação. Se aproximou de Júlio e o ajudou a levantar.
— Júlio, é o seguinte — começou ele, colocando o idoso sentado numa cadeira no canto da sala. — Eu e ele somos incumbidos de receber as almas que fazem a passagem. Normalmente só vem um de nós para facilitar o entendimento e agilizar as coisas. No seu caso, bem...como posso explicar?
— Seguinte, Julião. Eu e o anjinho estamos na dúvida de pra onde te mandar.
— Como assim? — questionou o idoso já mais calmo com a ideia do anjo e do demônio.
— De uma maneira geral a gente se resolve antes mesmo de descer pra cá.
— Fale por você, eu tenho que subir direto. Esse povo só faz merda.
— No seu caso, nós estamos na dúvida. Você fez coisas boas e coisas ruins e meio que chegamos a um empate.
— Você foi um lazarento com alguns e um santo com outros, daí bagunçou todo nosso esquema de pontuação — explicou o demônio, tirando um tolete de cera do ouvido com o mindinho.
Júlio estava atônito. Olhou novamente para seu corpo para se certificar que realmente era ele. Chegou até a dar um beliscão na própria perna para garantir que não estava sonhando. Os aparelhos todos desligados e ninguém a vista, a não ser os dois homens, indicavam que era melhor aceitar a realidade.
— E agora? — perguntou ele para os dois.
— Aí é que está, a gente também não sabe.
— Como não? Isso nunca aconteceu antes?
— Já, mas não com a gente — explicou o demônio. — Eu e esse aí já fizemos umas cagadas recentemente, e isso não iria pegar muito bem com a galera mais pra cima, sabe como é. Então, viemos os dois pra tentar dar um jeitinho nas coisas.
— Viemos para acertar as coisas — corrigiu o anjo. — Dar um jeitinho dá a impressão de que estamos fazendo alguma coisa de errado.
— Ele é brasileiro, vive dando jeitinho. Relaxa.
Júlio acariciou a barba branca e respirou fundo.
— E como vamos resolver isso?
— Nós gostaríamos de revisar contigo os seus principais feitos e então tomamos uma decisão conjunta, pode ser? — sugeriu o anjo.
O idoso assentiu. Seria interessante ver como funcionava a avaliação celestial.
— Pois bem, cada um tem três feitos seus, e então discutimos para resolver a questão de uma vez por todas — explicou o anjo.
Os dois homens materializaram uma prancheta e uma caneta. A do anjo era de madeira clara e a caneta era azul. Do demônio a prancheta preta e a caneta vermelha, usando uma folha de papel pardo para escrever, enquanto o anjo usava sulfite.
— Problemas de orçamento — disse o demônio mostrando a prancheta com o papel mais barato e erguendo as sobrancelhas.
— Dia 18 de outubro de 1985, Rio de Janeiro — começou o anjo. — Júlio estava caminhando pelo calçadão da praia de Ipanema quando avistou um menino de rua descalço e maltrapilho. Conversou com o rapazote e lhe deu seus próprios chinelos e dinheiro suficiente para comer e beber por uma semana.
— Depois esse menino voltou pra comunidade e usou o dinheiro pra comprar drogas e isso o levou para uma vida no tráfico. Anos depois esse mesmo rapaz seria o chefe de um bando sanguinário na favela da Rocinha.
— Mas eu não tive nada a ver com isso — rebatou Júlio.
— É como se você tivesse financiado o tráfico. Se não tivesse dado o dinheiro ao menino pode ser que ele nunca tivesse ido comprar drogas e conhecido a boca que o recrutou.
— Ah, tenha a santa paciência. Aqui não tem nem o que discutir, você está inventando. Fique tranquilo, Júlio. Esse conta pontos para o céu.
O idoso respirou aliviado. O demônio sorria capcioso, havia tentado uma manobra sem caráter, mas sem sucesso.
— Está bem, está bem. O segundo que você tem na sua lista também é na mesma linha, ele resgatava bicho da rua e colocava pra dentro de casa, fundou uma ONG e tal. Muito legal, salvar uns bichos e ir para o céu. Vocês lá de cima aceitam qualquer um — disse o demônio tomando o protagonismo do julgamento. — Vamos para o que me interessa. Dia 23 de novembro de 1953, Macaé. O réu, como assim deve ser chamado, estava com vontade de doces e resolveu retirar algumas moedinhas das doações da igreja em que frequentava, com idade suficiente para discernir o certo e errado, tomou a atitude mesmo assim. Você nega?
— É, isso foi vacilo — disse o anjo. — E onde você pensa que está? Isso aqui não é um episódio de Law and Order.
Júlio estava encabulado. O demônio riu.
— Eu sei, mas é tão legal falar desse jeito — respondeu o homem de preto.
— Se atenha aos fatos, ou pedirei objeção — disse o anjo entrando na brincadeira.
— Mas eu era apenas uma criança, não sabia de nada — argumentou Júlio.
— Você roubou dinheiro da igreja, parceiro. Até eu acho isso errado, e eu sou um demônio.
Júlio enrubesceu. A porta se abriu e Judite, a enfermeira, entrou na sala com uma maca com rodinhas e mais alguns ajudantes. Passou pelo anjo como se ele fosse feito de fumaça e foi em direção ao corpo de Júlio no meio do cômodo.
— Fique tranquilo, ela não consegue ver a gente — pontuou o anjo.
A enfermeira cobriu o rosto do idoso e travou as rodas da maca. Contou até três e os enfermeiros ergueram o corpo sem vida e transferiram para outra maca, usando o lençol como uma rede de pesca. Judite destravou as rodinhas e empurrou o corpo para fora da sala, fechando a porta e deixando os três seres de outro mundo sozinhos.
— Vamos parar de brincar, logo eles vão trazer outro para essa sala — apressou o anjo.
O demônio assentiu e fez sumir a prancheta.
— Está bem. Que pena, estava ficando divertido.
— O quê?
— Não mandamos ninguém para o inferno, porque roubou meia dúzia de moedas quando tinha 11 anos. Ainda é um ato sem vergonha, mas não vai ser por isso que eu vou te levar.
— Ainda mais hoje em dia, se você levar ele com essa justificativa você vai ser a chacota dos demônios — divertiu-se o anjo.
— Não é? — riu o demônio. — O que esse fez? Roubou milhões dos pobres. E esse? Estuprou e matou duas moças. E esse? Ah, esse é terrível, ele roubou seis moedas quando tinha 11 anos pra comprar bala. Aí você me quebra.
— Mas então como vamos resolver isso? Para onde eu vou?
Os dois homens se entreolharam e ergueram os ombros em dúvida.
— Você roubou muito dinheiro ao longo da sua vida. Falsificando notas e pedidos que nunca foram feitos.
— Genial, inclusive — interveio o demônio, apenas para provocar um olhar julgador do anjo.
— O problema é que você roubava esse dinheiro para dá-lo, inteiramente para os que precisavam. Não ficando com um centavo se quer para si mesmo.
— Nem pra usar pra sua família pra eu dizer que era um ato egoísta — completou o demônio. — Você queria ser o Robin Hood? Até ele tirava uma porcentagem pra si mesmo, eu sei, ele está lá comigo.
Júlio estava em silêncio, só ouvindo a discussão dos dois homens.
— Eu queria ajudar as pessoas, mas não tinha dinheiro. O que eu tinha pagava as coisas para minha família. Empresas farmacêuticas faturavam tanto e não se importavam com as pessoas, só com o dinheiro. Eu sei que errei, mas foi o jeito que eu encontrei de ajudar quem precisava.
— E foi aí que você lascou a gente — disse o demônio. — Você roubou um monte, mas ajudou uma galera também.
— E agora?
— Pra onde você acha que devemos mandá-lo? — perguntou o anjo.
— Não sei, são vocês que devem decidir, não é? Eu irei respeitar o que me disserem.
— Olha aí, que safado! — disparou o demônio. — A gente sabe que você só falou isso para parecer bonzinho. Por mim já te puxava pra baixo só por tentar sacanear a gente, mas esse daí gosta de você.
— Ele ajudou muita gente — rebateu o anjo.
— Dane-se, foi por meio de roubo — contra argumentou o demônio. — Esse deveria estar na minha jurisdição.
— Mas ele salvou... — o anjo hesitou. Materializou um caderninho e um óculos redondo e folheou suas anotações. — 4.232 almas.
O demônio arrancou o caderninho da mão do anjo.
— Ah, você inventou esse número. Tem nome aqui que nem faz sentido. O Wandisney eu aceito, agora Cháquira, Maiquel, e esse então? Afília Demaria. Você está de sacanagem. Se você não inventou esses nomes eu venho pessoalmente buscar quem nomeou essas crianças.
Júlio não pode conter o riso.
— Não discordo de você, mas fato é que o Júlio mudou a vida de todos nesta lista. Ajudou com processos de adoção, comprou casas, comida, remédios, abriu comércios e deu uma vida digna para todos que estão listados. Não fosse ele, 4.232 pessoas não teriam a vida que tem. E detalhe, ele não conhecia nenhuma delas antes de as ajudar, para você não vir me dizer que ele só ajudou os amigos.
O demônio suspirou e devolveu o caderninho para o anjo, que o fez sumir.
— Mas foi via dinheiro roubado.
— Sim, mas eu sempre me certifiquei de ganhar mais dinheiro para a empresa do que eu tirava. E ainda garantia que o que eu peguei nunca afetasse o resultado para que meus companheiros não tivessem prejuízo nos salários — defendeu-se Júlio.
— É então, foi nesses pontos que você me sacaneou — explicou o demônio. — Eu trabalho de forma binária, roubou queima, não roubou vai com o da asinha. Aí você me aparece roubando de um jeito até que bom.
— Roubar nunca é bom — adicionou o anjo.
— Você entendeu. Mas enfim, estou achando que não dá pra levar o Júlio pro inferno. O pessoal vai me encher o saco. Vou ficar taxado como o demônio que pegou o ladrão bonzinho. Não pega bem pra minha imagem.
Júlio se levantou da cadeira, vendo a oportunidade de escapar do inferno.
— Então está resolvido?
— Não precisa parecer tão feliz, você não sabe o que está perdendo. Lá embaixo faz um calorzinho da hora, você se sentiria em casa. Tem umas bundas para aqueles lados, fica faltando a praia só, mas quem sabe mais uns anos e a gente não faz umas reformas.
— Agradeço, mas acho que dessa vez eu vou com o Sr. Anjo — respondeu Júlio, já se aproximando do homem de branco.
O demônio riu.
— Sr. Anjo, de repente ficou importante — zombou o homem de preto. — Está legal, leva o tio. Você volta? Tem o rapaz do 203.
— O que bateu o carro bêbado, né?
— Esse mesmo.
— Ah, pode levar. Ele urinou bêbado dentro da igreja semana passada — respondeu o anjo. — Além do mais, vou mostrar as instalações lá de cima pro Julião.
— Está certo. Bom, prazer conhecê-lo, tio. Se cuida lá.
Júlio cumprimentou o demônio que foi desvanecendo até sumir de vez. O anjo abriu a porta da sala e do corredor vinha uma luz ofuscante. O velho homem seguiu o anjo para dentro da luz e para o além.