Um conto de infância
Lá estava ela, quarenta e dois anos, esposa e mãe bem sucedida, lavando a louça do jantar, quando de repente abriu-se uma janela no tempo e viu-se embalada por Eremildes. Suas perninhas golpeavam o vento a cada empurrão no balanço preso firmemente ao pé de manga no quintal.
Eremildes era toda gentileza. Moça da roça, de tratos rústicos e simplórios mas de uma dignidade invejável. Primas em algum grau que não se conta, a Eremildes era dada a responsabilidade pelos cuidados com a casa e as crianças. E ela cuidava com desvelo e amor. Embora não fosse muito estudada era moça de um português irrepreensível e tendo vivido por anos no Paraná ostentava um sotaque sulista que não combinava com a origem norte-mineira. Embalava a menina curiosa ao balanço, eram meados da década de 1980 e a menina ainda não completara uma década, mas carregava um brilho de sagacidade no olhar.
"Milde, o mundo vai acabar?"
"Dizem que vai, no ano 2000."
"E eu vou morrer?"
"Ninguém sabe responder a essa pergunta, porque ninguém sabe se isso é verdade." - disse a jovem cuidadora com segurança.
"Mas eu quero casar e ter um nenê." - disse a menina sonhadora.
"Você vai casar e ter um nenê, em 2000 você já terá 22 anos, com certeza terá mais de um nenê."
"Mas e se o mundo acabar e eu morrer, meu marido morrer e meu nenês morrerem vai ser ruim demais."
"Não se preocupe com isso agora, a vida é para ser vivida e pode ser que o mundo nunca se acabe. Como você imagina que vai ser o seu marido?" - perguntou a ama tentando desviar do assunto.
"Ele vai ter cabelo grande, vai chegar num cavalo branco com uma espada, vai ser um príncipe." - respondeu a menina que vivia num mundo de fantasia.
Outra janela se abriu no tempo, o mundo não acabou em 2000, mas o príncipe chegou em 2001 e, sobrevivendo ao caos do planeta, a menina - agora mulher feita- casou-se aos 25 anos e o primeiro rebentinho chegou aos 28. Depois dos trinta mais um filho e o ciclo se fechou.
Na segunda janela aberta a menina via Eremildes embalando seus sonhos, predizendo, pressentindo, conduzindo e a fazendo acreditar que tudo sempre ficaria bem. E ficou.
Ela voltou dessa viagem em alguns instantes e se pegou esfregando delicadamente a panela em que havia preparado o feijão, sorria abobalhada, num misto de magia e saudade, mas seu sentimento maior era de gratidão, por ter convivido e sido cuidada por mulheres como Eremildes.