Um sorriso inocente - por Amanda Rocha

O velocípede quebrado era de sua irmã mais nova, ganhara já de segunda mão, mas para ele lhe servia como um patinete: empurrava com um dos pés no chão, enquanto o outro pousava sobre o assento rosa já ressecado. As costas curvadas e o sorriso leve de dentes expostos cativaram-me a sorrir junto. O garoto de pele negra e semblante de paz caminhava de cima a baixo naquela rua acidentada e coberta pela terra seca do agreste nordestino. As pequenas casas se agrupavam lado a lado numa assimetria de tijolos, madeiras, telhas e lonas; todos sem cores. Suas frentes eram regadas pelo córrego fétido e nauseante da ausência de saneamento. Não poucas vezes este cenário encobria a ainda bela paisagem da caatinga que os cercava; tão seco e causticante cenário do mês de janeiro. Cachorros franzinos e famintos completavam a cena, bem como, outras crianças que gritavam e corriam na tentativa de alçarem voo. Em algumas bocas, chupetas; em outras, palavras pervertidas. Os homens já adultos com os seios expostos seguravam copos com bebidas alcoólicas e ouviam suas músicas da moda; ao lado, as mulheres, quase que desnudas, balançavam-se tentando acompanhar o ritmo que tocava. A fumaça dos cigarros pairava sobre eles e cobriam-lhes os vícios. O menino continuava a sorrir e brincar em seu patinete improvisado. Parou apenas por um momento e perguntou a um senhor já de idade que estava sentado num pequeno banco de madeira afastado dos adultos: seu Zé, eu vi num filme, na TV lá do bar de Nequinho, uns animais falando. Tem animais que falam de verdade ou isso só acontece nos filmes? O Senhor com olhos acolhedores girou um pouco a cabeça em uma nítida expressão de surpresa e carinho. Sorriu pensando como iria responder, mas antes de esboçar qualquer palavra fora atraído pelo choro de uma pequena, era a irmã do garoto, ela havia tropeçado enquanto corria. Sua mãe, junto às demais mulheres e com um cigarro nas mãos, grita para o menino, chamando-o por um apelido e com os braços gesticulando bruscamente, e ordena: vá ajudar sua irmã logo, vá! Ela continuou dançando enquanto ele corria desbravadamente como um super-herói para acudir sua irmã. Ergueu-a e ainda lhe beijou a testa. Ela voltou a correr e ele a passear com seu patinete. O senhor do banco olhou para o céu estiado e em seguida baixou a cabeça, parecia agradecido por ter conseguido livrar-se de uma pergunta tão difícil como aquela. Ele ficara entre a cruz e a espada: mentir ou acabar com a inocência de um infante? O silêncio, à semelhança de muitas situações, coube como a melhor resposta