JOANA, RAINHA POR DIREITO

Corria o ano de 1530.Um jovem D.João III já atormentado com a morte recorrente da maioria dos seus filhos dispôs dirigir-se ao convento de Santa Clara para agradecer, em pessoa, a D. Joana, a concessão dos seus direitos de sucessão ao trono de Espanha, juntos os reinos de Castela, Leão e Aragão pelos reis católicos.

O rei trajava de negro porque estava de luto por um dos seus filhos e foi encaminhado para uma sala ampla do capítulo onde aguardou uns minutos pela prima.

Então viu-a assomar vestida de rainha e vir ao seu encontro. A Excelente Senhora que acorreu a pegar-lhe nas mãos com um leve sorriso.

João aprendera a não mostrar as suas emoções em público mas não conseguiu deixar de transparecer o espanto por ver a imagem de D.Joana transformada de freira confessa nesse figurino resplandecente.

- Senhora! – murmurou com um olhar estarrecido e pensou”Nem Gil Vicente com o seu teatro era capaz deste espectáculo”.

- Sim, sou eu.Yo la Reina!Sentai-vos, querido Primo.

Frente a frente nos bancos de pedra junto a uma janela que dava para o claustro.

- A escritura já foi firmada pelos escrivãos e eu tinha que vir cá.

- Ainda bem porque queria ser eu, de viva voz a lembrar-vos do meu destino funesto.Sei que o vosso reinado também não tem sido fácil e que tiveste que suportar e tentar remediar muitos erros cometidos no passado.

D. João inclinou-se ligeiramente disposto a escutar aquela velha rainha sem trono, joguete nas mãos dos antepassados, roídos pela ambição e pelo poder.

Talvez a sua vida remontasse á primeira inseminação artificial perpetuada por médicos judeus que transportaram a semente de seu pai, o rei Henrique IV obtida não se sabe como e a derramaram através de um funil finíssimo no ventre da sua segunda mulher, Dona Joana de Portugal que as más línguas apelidavam de adúltera.

À morte de seu pai, ela fora destronada pela tia, meia irmã do rei, exilada por um tratado , depois da inconclusiva batalha de Toro, próximo de Zamora.

Já estava sob a protecção do marido idoso, o rei D.Afonso V de Portugal com cuja relação de consanguinidade tornou necessário aquardar pela dispensa papal que nunca chegou para que o casamento se pudesse consumar.

O velho rei abdicou no filho para correr em busca de alianças que nunca aconteceram com França e Borgonha, sujeito ás artimanhas de Luis XI, a “aranha universal” para defender os direitos da sua jovem noiva ao trono de Castela.

- Lembro-me bem quando o rei meu marido voltou derrotado porque Luis de França protelava interminavelmente a decisão de nos conceder apoio militar contra os usurpadores e o principe perfeito e futuro rei D.João II retirou a coroa da cabeça e num gesto magnânimo devolveu-a ao pai.Esse sabia bem quando devia ser o Mocho e quando devia ser o Falcão.Nessa altura, estava retirada em Aveiro na companhia de sua irmã, minha prima e enteada, outra infeliz Joana que acabou por ganhar fama de santa. Acabei por me transformar numa peça de xadrez, num trunfo a jogar no momento oportuno contra a hegemonia de Isabel e de Fernando.Como eu os odiei e a odiei sobretudo a ela, Isabel a Católica, Isabel a arrogante.Nunca lhe roguei nenhuma praga mas a vida encarregou-se de a castigar e à sua descendência, fazendo-as esvair em sangue em partos difíceis e fatais.D. João II prometeu dar-me protecção, que nada nunca me faltaria, que poderia circular dentro e fora do convento, de criar uma côrte minha mesmo que tivesse que cumprir o prometido para acalmar o medo dos inimigos e ser obrigada a professar.Utilizou-me como meio de ameaçar e apaziguar os reis seus vizinhos.

Tudo isso era verdade e ela era agora no fim da vida, uma monja tal como fora acordado no Tratado de Alcaçovas em 1479 que pusera termo à guerra da sucessão que durara cinco anos contra os reis católicos.

- Quantas vidas sacrificadas! – comentou o jovem D.João III ainda na sua fase tolerante e piedosa, antes de, em desespero, permitir e tomar como seus os desmandos do Santo Tribunal da cruel Inquisição.

Mas a Excelente Senhora prosseguiu:

- Sim quantas mortes para servirem a ambição desmedida e a ganância pelo poder de tão poucos.

- Talvez seja sempre assim.Nem Deus nem os homens conseguirão porventura inverter esse propósito maligno.

Ela tivera alguma satisfação em recusar o casamento proposto com o filho dos reis católicos, de recusar até ao fim fazer os votos, de exercer a prerrogativa de se deslocar até à corte por longos períodos, de se rir na cara do embaixador que lhe chegou a propôr casamento com o rei Fernando, viúvo de Isabel.

- Talvez tivesse sido esse um gesto sábio.Rejeitar envolver-me em manobras políticas e dedicado o resto da miha vida à devoção de Deus e das obras de caridade no apoio aos desfavorecidos.Em dar o exemplo.Mas não evitarei certamente de ser criticada por me ter deixado acomodar e não ter saído de Portugal para ir fortalecer a minha causa junto dos muitos que lhe foram fieis.

- Certamente, Senhora, foste um exemplo.A Rainha Catarina minha consorte sempre o disse.És a rainha por direito de Leão e Castela , foste jurada herdeira ainda princesa das Astúrias…

- Mas tiraram-me tudo!

- Sim.Menos uma coisa que a História nunca irá esquecer.A vossa… Dignidade.

Ambos se fitaram longamente compreendendo por ventura o alcance daquela palavra.Despediram-se amigos e confidentes.

D.Joana, a Excelente Senhora faleceu alguns meses depois.Foi sepultada no Mosteiro num jazigo junto à sala capitular contra a sua vontade de envergar o hábito de S.Franscisco e jazer no Convento de Santo António do Varatojo.

Em 1545, a rainha D.Catarina de Áustria, mulher de D.João III mandou construir um túmulo mais adequado á sua condição de rainha de Castela e Leão.

Em nome da Dignidade!

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 10/02/2021
Código do texto: T7181392
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