O Excelentíssimo Senhor e o Senhor Servidor (*)
Fim de expediente. O servidor desliga o computador e tranca o armário. Até segunda, bom fim de semana – despede-se. Coloca seu telefone celular no bolso da calça. Sai. São de seu uso no trabalho uma mesa com telefone, um armário com livros e o computador. As grandes decisões são tomadas longe dali, pelo Patrão, uma figura de muitas faces e muitas mãos. O Patrão senta-se em pequenos tronos e nem sempre suas cabeças estão em harmonia, mas ao final de cada conflito as bocas dissonantes se calam abafadas pela mão mais forte.
Burro pensante. Ah, se desse um pinote, jogasse o Patrão ribanceira abaixo e dissesse: tchau, Excelência, o senhor está despedido – pensa. Sacrilégio. Em alguns países, pessoas que pensam assim são fuziladas. Mas não é esse o seu caso, ele não tem tanta importância para o Patrão. O servidor é apenas um homem que está chateado, a pé (deixou o carro na oficina, para conserto) e esqueceu o caminho de casa. Uma bomba de efeito retardado explodiu em seus pensamentos, as cinzas ainda caem. Um carro freia violentamente a seu lado e o motorista grita:
– Tá querendo morrer?
O servidor é sempre atencioso em tudo, mas nessa tarde isso é impossível, os pensamentos não deixam. A calçada à sua frente parece um lugar seguro, corre. Para onde mesmo está indo? Entra num bar e senta-se. É preciso fazer o reconhecimento do mundo para não ser atropelado, admite. A acusação é grave:
- O Patrão diz que sou o culpado pelo rombo no cofre, mas não sou. Tem nada não. Posso ser jovem de novo, beber um copo de cerveja, ficar feliz, mudar de emprego.
Pede cerveja. Passa as duas mãos espalmadas sobre a mesa, como se espalhasse cartas de baralho. Miragens, miragens. As cláusulas de areia voaram com o vento e também o dinheiro do cofre. Mais que as perdas no salário e o tempo a mais que terá de trabalhar, dói-lhe o vazio debaixo dos pés: o contrato rasgado, a punição, a história que o Patrão escreve. Bebe o primeiro copo, e depois bebe muitos outros. O jornal e a televisão mostraram o Patrão feliz, erguendo os braços em sinal de vitória. Qual a razão da festa? Pede a última cerveja.
– Mais respeito comigo, Excelência, e mais respeito com os aposentados; e saiba que o senhor é nosso empregado e esse cofre não é seu. Trate logo de prestar contas desse rombo, centavo por centavo, que essa sua história está muito mal contada, e cuide bem da cabeça que foi eleita para cumprir o contrato e não para rasgá-lo. E digo mais, quero pagar toda a minha dívida externa, agora.
Ajeita as garrafas na mesa e pede a conta. Olha em volta, as cadeiras do bar estão de pernas para cima, sobre as mesas. Pensa no dia seguinte. Consola-se e sentencia:
– Ainda haverá muita luta de espada, bombas, cachorros tremendo de medo e gatos espavoridos subindo no telhado. Revolução. A minha festa.
E se o ônibus não passasse? E se o ônibus mudasse de rumo e o levasse a uma cidade desconhecida? E se... Era uma brincadeira sua, quando criança, criar hipóteses começadas por “e se”. Já adulto, perdeu a capacidade de brincar. Nunca havia pensado: e se o Patrão rasgasse o contrato. Na parada de ônibus, considerando a solidão da rua, o desamparo da alma, o prenúncio da dor e o desvelo da noite, senta-se no meio-fio. Tem sono e vontade de mijar. Abre a braguilha, põe o pinto pra fora e mija. Está escrito nas entrelinhas do contrato, na parte que não foi rasgada, que isso é proibido nesse local. Um atentado violento ao pudor da própria consciência. Que decadência... nem o Patrão seria capaz disso!
Tira momentaneamente os óculos. A dor já incomoda. De vez em quando é bom tirar os óculos para ouvir melhor os sentimentos – filosofa. As luzes da cidade são rosáceas que piscam ao longe, e se emendam quando estão muito próximas entre si. O Patrão não vê essas coisas, tem olhos diferentes. Ruídos de motor se emendam e murmuram profundamente. No oco mais inatingível da cabeça há um zumbido que não vem de lugar nenhum. E em algum lugar por perto um telefone toca insistentemente; o morador não está em casa.
O remédio. Engole sem água. Qual o argumento para não morrer? Sentimentalismo não vale. Argumento, não tem, nem dele precisa. Mas quer cumprir seu roteiro. Marcara um encontro consigo. Para depois de aposentado. Assuntos pessoais. Se a aposentadoria demorar muito vai chegar atrasado. Pensa em algo razoável: alguns anos de trabalho (a mais que o combinado, como quer o Patrão) e outro tanto de aposentadoria, sem ter de vender a casa. Contrai-se com a dor. Tem uma idéia ridícula. Imitar o Patrão. Falar para a morte:
- Sabe com quem está falando?
A morte rolaria na grama, engasgada de tanto rir, e lhe daria cinco minutos de vida. Reduz os sonhos. Pede:
- Quero viver pelo menos até amanhã à tardinha. Quero abraçar a família e plantar a muda de jabuticabeira.
Chega em casa tarde, o que não é seu costume, e sem avisar. A luz da sala está acesa. Entra. A mulher está reclinada com o cobertor, no canto do sofá. Ao vê-lo, pára de chorar e aperta as mãos e o cobertor contra o peito. Ela tinha imaginado tanta coisa – hospital, ambulância, sequestro. Fita o marido: algo descuidado, a barriga saliente, os cabelos ralos e grisalhos. O servidor conta a sua verdade, uma história sem começo, meio ou fim. Ele tenta ainda um gesto de carinho, procurando na esposa algum sinal de perdão. Irremediável. Podia ter telefonado – desabafa a mulher. Já na cama, olham longamente o teto do quarto, antes de apagar a luz. Ele dorme, ela não.
Como dormir? Lembra-se do nascimento dos filhos. Pensa na cozinha com seus armários, pia, fogão, a mesa completa de talheres para o almoço nos fins de semana. Agora, com os filhos morando fora, a casa ficou até grande demais e o encontro com todos eles mais raro. Ela e o marido talvez devessem procurar formas mais baratas de morar. Trocar a casa, de prestações cada vez mais altas, por um apartamento pequeno – ela reexamina as preocupações rotineiras, tem medo de sair delas. Onde está seu sexto sentido que nada informa? O telefone. Ele nem atendeu.
O servidor dorme. Não sonha, transforma-se. É mais que patrão. É o salvador. Eleições à vista! Feira de ilusões via satélite, queima total de estoque. Só ele tem a lanterna e a bússola. A pátria será a “mãe gentil de seios fartos”, pingando leite e mel na boca de todos. Irmãos solícitos tiram as pedras do caminho, emprestam sandálias, oferecem o cajado. E sobe as escadas do poder, incompreendido em sua missão, ébrio de luz, mal percebendo que já sobe sozinho e o corpo arde como incenso no altar das palavras mágicas: neoliberalismo, socialismo, comunismo, humanismo, raquitismo, reumatismo...
O sonho termina e emenda-se com pesadelo. Agora é o patrão. Nada mais lhe resta senão encontrar o culpado, pelo rombo no cofre.Tem que encontrar o culpado, e é melhor que seja um culpado fraco. Reformas! Reformas para curar o egoísmo dos servos que trabalham na sua casa. Negociações em voz baixa. Quem não estiver satisfeito pode ir para casa dormir mais cedo. A decisão está tomada: escrever Cartas de Boas Intenções aos credores externos, divulgar a notícia de que o servidor é o culpado e vai pagar caro:
- Pega o servidor mijão, pega! (Doutores com as gravatas ao vento, outros doutores com as longas vestes levantadas até a cintura, correm e gritam). Pega, pega o servidor mijão, pega! Milhões, milhões, juntemos nossos quinhões. Contratemos amigos, parentes. Arrecadação. Sobras de campanha. Perpetuação. Poder. Provar que somos bons e os melhores, rumo à vitória, e contra o quê e não sei mais o quê, lutaremos até a morte!
Eita ressaca danada! O Patrão tem mesmo pacto com o diabo. Apossou-se do corpo do servidor para uma reunião noturna. O servidor levanta-se. A partir do corredor, segue no ar um cheirinho bom de café até a cozinha. O café está pronto – a mulher avisa. Senta-se. Bebe devagar. Bom, está forte – elogia. Sente-se humano e triste. Olha pela janela: a mulher já está cuidando das orquídeas preferidas dela, no canto sombreado do quintal. O servidor vai cuidar da jabuticabeira. O pequeno pomar estará completo. Pés de fícus, ainda pequenos, rentes ao alambrado, cercam a propriedade. A cova quase pronta e descobre uma pedra. A picareta arranca faíscas. O suor escorre na testa. Um cachorro late ao longe. Subitamente, o desequilíbrio, os pés escorregam para dentro da cova. O servidor cai sentado na terra fofa.
Por que não descansar um pouco? Inclina-se para o lado e toca com a ponta dos dedos as folhas da pequena jabuticabeira. Não é miragem, é uma jabuticabeira. Todos os cachorros do bairro já estão latindo. Algo estranho acontece. Será a morte, com a foice? Olha de soslaio a rua. Vê um carro preto movendo-se devagar, quase em silêncio. Estica o pescoço, aumenta as rugas da testa. Boquiaberto, os dois pés ainda dentro da cova, procura melhor visão da rua, por cima da folhagem de fícus. O vidro escuro abaixa-se na janela do carro. É o Patrão – uma de suas faces. Seria melhor negociar com a morte. O servidor sente medo. O Patrão estende o braço fora do carro, faz-lhe mira certeira com o dedo indicador apontado, depois traça no ar um desenho enigmático, espécie de cruz meio torta. O momento é solene como um eclipse total de sol. Respeitosamente, o servidor retribui o gesto acenando três vezes com a mão direita. O carro distancia-se. Os cachorros param de latir. Continua o trabalho.
Distraidamente, quase já ia enterrando a esperança da vida inteira na cova da jabuticabeira. Reage. Não daria esse gosto ao Patrão. Mas, distraidamente, com quase raiva, e sem querer, acaba misturando a esperança com esterco de gado e aduba a terra. A jabuticabeira está plantada. Volta à cozinha. A mulher já prepara o almoço, pergunta:
– Quem é a “mãe gentil de seios fartos” de seus sonhos à noite?
Não entende a pergunta. Melhor mudar de assunto. Entre um e outro gole d’água, conta à mulher:
– Sabe quem passou de carro em nossa rua, ainda há pouco? O “Ilustríssimo”, lembra-se dele? Uma vez passou por aqui, pedindo votos.
– Machucou-se?
– Quem machucou-se?
– Você, quando caiu na cova da jabuticabeira.
– Eu não caí, sentei-me, estava cansado.
– Ainda bem. Mas sentou-se com muita força...
A mulher tem esse irritante senso de humor, às vezes com ironia.
A família completa. Almoço. A revolução dos netos. Luta de espada no tapete da sala. Bombas juninas estourando no quintal e cachorros se escondendo. Gatos perseguidos com balde d’água.
- Em vez de molhar os gatos, molhem a jabuticabeira...
Uma festa. Os adultos falam de tudo e de emprego. Um filho está estudando para concurso público, folheia a Constituição Federal. O servidor não quer desapontar ninguém. Ler a Constituição é muito útil para concurso – aconselha.
Longe dali, o Patrão suspira e conspira. Imposto sobre jabuticabas! Faz contas. Jabuticabas! E se... (murmura alguma coisa, tem ideias). Brasília terá mais um pôr do sol sangrento. No canil da mansão, ao longe, os cães pensam que são lobos e que é noite de lua cheia. O patrão tem mais ideias e anota: ... e punição exemplar para quem escrever mentiras a meu respeito. Os lobos uivam:
– Uuuuuuuu...
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Fim de expediente. O servidor desliga o computador e tranca o armário. Até segunda, bom fim de semana – despede-se. Coloca seu telefone celular no bolso da calça. Sai. São de seu uso no trabalho uma mesa com telefone, um armário com livros e o computador. As grandes decisões são tomadas longe dali, pelo Patrão, uma figura de muitas faces e muitas mãos. O Patrão senta-se em pequenos tronos e nem sempre suas cabeças estão em harmonia, mas ao final de cada conflito as bocas dissonantes se calam abafadas pela mão mais forte.
Burro pensante. Ah, se desse um pinote, jogasse o Patrão ribanceira abaixo e dissesse: tchau, Excelência, o senhor está despedido – pensa. Sacrilégio. Em alguns países, pessoas que pensam assim são fuziladas. Mas não é esse o seu caso, ele não tem tanta importância para o Patrão. O servidor é apenas um homem que está chateado, a pé (deixou o carro na oficina, para conserto) e esqueceu o caminho de casa. Uma bomba de efeito retardado explodiu em seus pensamentos, as cinzas ainda caem. Um carro freia violentamente a seu lado e o motorista grita:
– Tá querendo morrer?
O servidor é sempre atencioso em tudo, mas nessa tarde isso é impossível, os pensamentos não deixam. A calçada à sua frente parece um lugar seguro, corre. Para onde mesmo está indo? Entra num bar e senta-se. É preciso fazer o reconhecimento do mundo para não ser atropelado, admite. A acusação é grave:
- O Patrão diz que sou o culpado pelo rombo no cofre, mas não sou. Tem nada não. Posso ser jovem de novo, beber um copo de cerveja, ficar feliz, mudar de emprego.
Pede cerveja. Passa as duas mãos espalmadas sobre a mesa, como se espalhasse cartas de baralho. Miragens, miragens. As cláusulas de areia voaram com o vento e também o dinheiro do cofre. Mais que as perdas no salário e o tempo a mais que terá de trabalhar, dói-lhe o vazio debaixo dos pés: o contrato rasgado, a punição, a história que o Patrão escreve. Bebe o primeiro copo, e depois bebe muitos outros. O jornal e a televisão mostraram o Patrão feliz, erguendo os braços em sinal de vitória. Qual a razão da festa? Pede a última cerveja.
– Mais respeito comigo, Excelência, e mais respeito com os aposentados; e saiba que o senhor é nosso empregado e esse cofre não é seu. Trate logo de prestar contas desse rombo, centavo por centavo, que essa sua história está muito mal contada, e cuide bem da cabeça que foi eleita para cumprir o contrato e não para rasgá-lo. E digo mais, quero pagar toda a minha dívida externa, agora.
Ajeita as garrafas na mesa e pede a conta. Olha em volta, as cadeiras do bar estão de pernas para cima, sobre as mesas. Pensa no dia seguinte. Consola-se e sentencia:
– Ainda haverá muita luta de espada, bombas, cachorros tremendo de medo e gatos espavoridos subindo no telhado. Revolução. A minha festa.
E se o ônibus não passasse? E se o ônibus mudasse de rumo e o levasse a uma cidade desconhecida? E se... Era uma brincadeira sua, quando criança, criar hipóteses começadas por “e se”. Já adulto, perdeu a capacidade de brincar. Nunca havia pensado: e se o Patrão rasgasse o contrato. Na parada de ônibus, considerando a solidão da rua, o desamparo da alma, o prenúncio da dor e o desvelo da noite, senta-se no meio-fio. Tem sono e vontade de mijar. Abre a braguilha, põe o pinto pra fora e mija. Está escrito nas entrelinhas do contrato, na parte que não foi rasgada, que isso é proibido nesse local. Um atentado violento ao pudor da própria consciência. Que decadência... nem o Patrão seria capaz disso!
Tira momentaneamente os óculos. A dor já incomoda. De vez em quando é bom tirar os óculos para ouvir melhor os sentimentos – filosofa. As luzes da cidade são rosáceas que piscam ao longe, e se emendam quando estão muito próximas entre si. O Patrão não vê essas coisas, tem olhos diferentes. Ruídos de motor se emendam e murmuram profundamente. No oco mais inatingível da cabeça há um zumbido que não vem de lugar nenhum. E em algum lugar por perto um telefone toca insistentemente; o morador não está em casa.
O remédio. Engole sem água. Qual o argumento para não morrer? Sentimentalismo não vale. Argumento, não tem, nem dele precisa. Mas quer cumprir seu roteiro. Marcara um encontro consigo. Para depois de aposentado. Assuntos pessoais. Se a aposentadoria demorar muito vai chegar atrasado. Pensa em algo razoável: alguns anos de trabalho (a mais que o combinado, como quer o Patrão) e outro tanto de aposentadoria, sem ter de vender a casa. Contrai-se com a dor. Tem uma idéia ridícula. Imitar o Patrão. Falar para a morte:
- Sabe com quem está falando?
A morte rolaria na grama, engasgada de tanto rir, e lhe daria cinco minutos de vida. Reduz os sonhos. Pede:
- Quero viver pelo menos até amanhã à tardinha. Quero abraçar a família e plantar a muda de jabuticabeira.
Chega em casa tarde, o que não é seu costume, e sem avisar. A luz da sala está acesa. Entra. A mulher está reclinada com o cobertor, no canto do sofá. Ao vê-lo, pára de chorar e aperta as mãos e o cobertor contra o peito. Ela tinha imaginado tanta coisa – hospital, ambulância, sequestro. Fita o marido: algo descuidado, a barriga saliente, os cabelos ralos e grisalhos. O servidor conta a sua verdade, uma história sem começo, meio ou fim. Ele tenta ainda um gesto de carinho, procurando na esposa algum sinal de perdão. Irremediável. Podia ter telefonado – desabafa a mulher. Já na cama, olham longamente o teto do quarto, antes de apagar a luz. Ele dorme, ela não.
Como dormir? Lembra-se do nascimento dos filhos. Pensa na cozinha com seus armários, pia, fogão, a mesa completa de talheres para o almoço nos fins de semana. Agora, com os filhos morando fora, a casa ficou até grande demais e o encontro com todos eles mais raro. Ela e o marido talvez devessem procurar formas mais baratas de morar. Trocar a casa, de prestações cada vez mais altas, por um apartamento pequeno – ela reexamina as preocupações rotineiras, tem medo de sair delas. Onde está seu sexto sentido que nada informa? O telefone. Ele nem atendeu.
O servidor dorme. Não sonha, transforma-se. É mais que patrão. É o salvador. Eleições à vista! Feira de ilusões via satélite, queima total de estoque. Só ele tem a lanterna e a bússola. A pátria será a “mãe gentil de seios fartos”, pingando leite e mel na boca de todos. Irmãos solícitos tiram as pedras do caminho, emprestam sandálias, oferecem o cajado. E sobe as escadas do poder, incompreendido em sua missão, ébrio de luz, mal percebendo que já sobe sozinho e o corpo arde como incenso no altar das palavras mágicas: neoliberalismo, socialismo, comunismo, humanismo, raquitismo, reumatismo...
O sonho termina e emenda-se com pesadelo. Agora é o patrão. Nada mais lhe resta senão encontrar o culpado, pelo rombo no cofre.Tem que encontrar o culpado, e é melhor que seja um culpado fraco. Reformas! Reformas para curar o egoísmo dos servos que trabalham na sua casa. Negociações em voz baixa. Quem não estiver satisfeito pode ir para casa dormir mais cedo. A decisão está tomada: escrever Cartas de Boas Intenções aos credores externos, divulgar a notícia de que o servidor é o culpado e vai pagar caro:
- Pega o servidor mijão, pega! (Doutores com as gravatas ao vento, outros doutores com as longas vestes levantadas até a cintura, correm e gritam). Pega, pega o servidor mijão, pega! Milhões, milhões, juntemos nossos quinhões. Contratemos amigos, parentes. Arrecadação. Sobras de campanha. Perpetuação. Poder. Provar que somos bons e os melhores, rumo à vitória, e contra o quê e não sei mais o quê, lutaremos até a morte!
Eita ressaca danada! O Patrão tem mesmo pacto com o diabo. Apossou-se do corpo do servidor para uma reunião noturna. O servidor levanta-se. A partir do corredor, segue no ar um cheirinho bom de café até a cozinha. O café está pronto – a mulher avisa. Senta-se. Bebe devagar. Bom, está forte – elogia. Sente-se humano e triste. Olha pela janela: a mulher já está cuidando das orquídeas preferidas dela, no canto sombreado do quintal. O servidor vai cuidar da jabuticabeira. O pequeno pomar estará completo. Pés de fícus, ainda pequenos, rentes ao alambrado, cercam a propriedade. A cova quase pronta e descobre uma pedra. A picareta arranca faíscas. O suor escorre na testa. Um cachorro late ao longe. Subitamente, o desequilíbrio, os pés escorregam para dentro da cova. O servidor cai sentado na terra fofa.
Por que não descansar um pouco? Inclina-se para o lado e toca com a ponta dos dedos as folhas da pequena jabuticabeira. Não é miragem, é uma jabuticabeira. Todos os cachorros do bairro já estão latindo. Algo estranho acontece. Será a morte, com a foice? Olha de soslaio a rua. Vê um carro preto movendo-se devagar, quase em silêncio. Estica o pescoço, aumenta as rugas da testa. Boquiaberto, os dois pés ainda dentro da cova, procura melhor visão da rua, por cima da folhagem de fícus. O vidro escuro abaixa-se na janela do carro. É o Patrão – uma de suas faces. Seria melhor negociar com a morte. O servidor sente medo. O Patrão estende o braço fora do carro, faz-lhe mira certeira com o dedo indicador apontado, depois traça no ar um desenho enigmático, espécie de cruz meio torta. O momento é solene como um eclipse total de sol. Respeitosamente, o servidor retribui o gesto acenando três vezes com a mão direita. O carro distancia-se. Os cachorros param de latir. Continua o trabalho.
Distraidamente, quase já ia enterrando a esperança da vida inteira na cova da jabuticabeira. Reage. Não daria esse gosto ao Patrão. Mas, distraidamente, com quase raiva, e sem querer, acaba misturando a esperança com esterco de gado e aduba a terra. A jabuticabeira está plantada. Volta à cozinha. A mulher já prepara o almoço, pergunta:
– Quem é a “mãe gentil de seios fartos” de seus sonhos à noite?
Não entende a pergunta. Melhor mudar de assunto. Entre um e outro gole d’água, conta à mulher:
– Sabe quem passou de carro em nossa rua, ainda há pouco? O “Ilustríssimo”, lembra-se dele? Uma vez passou por aqui, pedindo votos.
– Machucou-se?
– Quem machucou-se?
– Você, quando caiu na cova da jabuticabeira.
– Eu não caí, sentei-me, estava cansado.
– Ainda bem. Mas sentou-se com muita força...
A mulher tem esse irritante senso de humor, às vezes com ironia.
A família completa. Almoço. A revolução dos netos. Luta de espada no tapete da sala. Bombas juninas estourando no quintal e cachorros se escondendo. Gatos perseguidos com balde d’água.
- Em vez de molhar os gatos, molhem a jabuticabeira...
Uma festa. Os adultos falam de tudo e de emprego. Um filho está estudando para concurso público, folheia a Constituição Federal. O servidor não quer desapontar ninguém. Ler a Constituição é muito útil para concurso – aconselha.
Longe dali, o Patrão suspira e conspira. Imposto sobre jabuticabas! Faz contas. Jabuticabas! E se... (murmura alguma coisa, tem ideias). Brasília terá mais um pôr do sol sangrento. No canil da mansão, ao longe, os cães pensam que são lobos e que é noite de lua cheia. O patrão tem mais ideias e anota: ... e punição exemplar para quem escrever mentiras a meu respeito. Os lobos uivam:
– Uuuuuuuu...
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(*) Publicado na coletânea Antologia 2005 da Abace, pela Editora LavraLivro.