A moto quebrou

O pai de Celso era Justiniano, que durante toda a infância e adolescência de seu filho, tentou repassar os ideais de uma moral e ética de respeito e consideração pelos outros. Justiniano tinha a esperança que Celso fosse um homem distinto. Diferente dos "animalescos" que por ali viviam.

Mas o que era ser "animalesco" segundo Justiniano? Era cultivar uma série de características que, inevitavelmente, colocariam um homem em uma série de problemas. "Não se meta em problemas Celso...". Com esta frase, iniciava os ensinamentos que tirariam toda e qualquer possibilidade de seu filho se tornar um ser intratável, imoral e tolo. Em tese tirariam.

"Celso, a tua conduta tem de ser a mesma em toda e qualquer situação". "Celso, meu filho, aja no mundo como se você estivesse sendo filmado sempre". "Tenha um caráter forte meu filho. E para isto, mantenha a sua palavra o máximo possível, não se tornando para os outros um homem imprevisível". "Eu repito meu filho: a tua conduta tem de ser a mesma em toda e qualquer situação."

As pessoas morrem. Na dor da morte, há choros, lembranças e lamentações. Há homenagens. A morte levou Justiniano quando Celso estava no ápice de seus 22 anos de idade. Ah! Os 22 anos de idade...! Se acaso o jovem adulto consegue suplantar episódios traumáticos, a vida se converte em puro vigor sem pensar no amanhã. Celso conseguiu encarar a morte de seu pai como um evento natural. Homenageou-o, tatuando uma de suas frases-lições: "Celso, a tua conduta tem de ser a mesma em toda e qualquer situação". Tatuou-a nas costas...

Celso cortava a cidade de ponta a ponta com sua moto. Uma CB 500. A herança permitiu ao jovem a concretização de algumas vontades materiais imediatas. Aos 22 anos, quer-se fazer tudo em um único dia. Quer-se ser absoluto em uma única noite. A moto é uma das expressões do "tudo posso", do "nada temo". Porque assim como rapidamente se chega à fonte do prazer, rapidamente se foge de um perigo eminente.

Andar em bando tal e qual os vadios antigos procediam com seus cavalos. A cidade é uma selva. Os desejos a serem saciados têm alvos concretos, específicos. Danificar com a sola do tênis o espelho lateral de um carro parado em um engarrafamento, ou, abordar grosseiramente uma mulher, ou, rapidamente roubar um distraído pedestre. Nas três ocasiões, a probabilidade de uma reação exitosa da vítima era baixa. Os agressores, incluso Celso, tinham como escape, após a ação, a moto.

Aos 23 anos, Celso já tinha esquecido todas as lições de seu pai. Sua ética era outra. A "ética do homem que anda de moto". Eu explico: é porque justamente eu estou de moto que eu tudo posso. Não há limites.

Se não há limites, é porque as circunstâncias múltiplas da vida ainda não apresentaram um...

Após reagir no mesmo tom ao xingamento de um homem que estava parado no trânsito, reação esta na qual Celso apontou o dedo na cara deste motorista, dizendo-lhe, dentre tantas outras coisas, que ele era um .... , Celso aperta o botão da ignição. O botão da ignição era a coragem de Celso em agir do modo como agia. A sua nova ética, diferente daquela pregada por seu pai, dependia do botão da ignição de sua CB 500. Contudo, naquele dia, o botão da ignição não funcionou.

"A moto quebrou...", disse para si mesmo, em tom baixo e atônito o Celso. Era uma manhã de sol. O motorista ofendido por Celso, fez resplandecer diante dos olhos do motoqueiro um revolver 38 prata. Não havia nada que Celso pudesse fazer portanto.

Florianópolis, 24 de janeiro de 2020

Cleber Caetano Maranhão