Circunstâncias
Naqueles tempos em que os portos amazônicos eram movimentados , provendo uma boa circulação de mercadorias e matérias-primas que aqueciam as economias locais , conviviam também mazelas como roubo e o contrabando de cargas para revenda ao mercado negro. Operavam à favor destas últimas grupos mafiosos inseridos tanto na burocracia como nos sindicatos portuários , ali mostravam seu poder de fogo , e não raro, aplicavam-se “ medidas radicais “ para manter e prevalecer seus interesses.
É naquele universo em rebuliço diário e sem conhecer descanso que trabalham quatro arrumadores , seus nomes de guerra já diziam alguma coisa à respeito : Vadicão , Macacão, Paquitão e Xizão ; se conheciam desde meninos , até se consideravam irmãos com aquele espírito de um por todos , todos por um . Naqueles armazéns atuavam com dedicação, daqueles que suavam os uniformes gastos fosse qual fosse o serviço dado , e a certeza de que ao final tudo seria entregue direitinho .
Entretanto nem tudo eram flores , os preocupavam , bem como aos demais , as péssimas condições de vida e os minguadíssimos salários da classe . Eram corriqueiras as agruras para se manterem , bem como às famílias, por vezes faltava o essencial nas mesas , as proles sofriam , por vezes se humilhavam com a agiotagem. A bonança parecia ser para poucos, a classe pegava duro mas o horizonte não era nada animador. O dilema onipresente era : o que fazer pra melhorar ? Eles sabiam daquelas atividades subterrâneas, e com o tempo iam sendo seduzidos pela possibilidade de ganhos extras e tirar a corda do pescoço . Muitos dos trabalhadores portuários participavam e se sentiam satisfeitos , valia a pena esse “bico” salvador . Um dia aquela resistência se quebrou, e ante aquelas circunstâncias presentes eles assumiriam um risco , fechariam os olhos, cruzando as fronteiras entre o certo e o errado, o moral e o imoral; afinal a vida era assim mesmo , ambígua .
Nessa nova “atividade” mostrariam serviço e dedicação , sendo logo convocados para missões mais arriscadas como resolverem ‘ incômodos’, principalmente com os ditos “abelhudos “ , os que investigavam e vigiavam pela boa ordem das mercadorias nos armazéns . Eram missões que exigiam todo um preparo e cuidado , força física aplicada de forma cirúrgica e discreta ,nada de improvisos e rompantes, sem dar chance . Em certo início de noite os quatro são convocados para uma reunião em um bar , reunidos em um reservado com um senhor de porte elegante que levava um chapéu panamá à cabeça e trajava uma impecável camisa branca enfeixada por um colete de malha marrom . Ele discretamente conversa com o grupo , dum envelope retira uma foto com duas pessoas que estão diante do portão do armazém de número 5, justo onde atuavam.
- São “ abelhudos “ – e leva o indicador à garganta , era recado curto para bom entendedor .
Estudar o hábito daqueles dois era fundamental para elaborar o plano.
Ficavam até tarde da noite pelo armazém , nada mais óbvio para investigadores contratados pelas empresas que se sentiam prejudicadas pela evasão de mercadorias .
Paquitão e Xizão teriam a incumbência de segui-los aos calcanhares e pelas sombras , diariamente e pela noite os alvos se encontravam entre as pilhas de engradados daquele armazém , o faziam de forma apurada , coisa de pente fino . Não perceberão que estavam sendo seguidos e vigiados esse tempo todo. Em certo tardar da noite , a dupla resolve fazer o encontro ‘inesperado’ com os dois investigadores que se sentirão surpreendidos e meio sem jeito . Eles se imaginavam sós ali , acenaram então que já estavam de saída .
Paquitão e Xizão dizem que também já iam fazer o mesmo , hoje fora um dia pesado pra eles . Aqueles dois , que não escondem o quão importunados ficaram, vão se dirigindo à porta dos fundos do armazém , tentam apressar os passos mas Paquitão e Xizão se ‘colam’ neles os distraindo com conversas ligeiras. Na área externa quando passam junto à uma camionete parada , a dupla repentinamente avança sobre aqueles dois agarrando-os . Momento em que a porta traseira do veículo se abre sendo então empurrados para dentro onde já estavam Vadicão e Macacão . Em seguida sobem os dois , a camionete toma rumo à Rodovia SNAPP .
Mais um dia de febril atividade portuária , já pela noite os quatro se encontram com aquele senhor sempre elegante no reservado de um bar, tudo saíra às mil maravilhas, aqueles “ abelhudos “ não importunam mais . Ele sorri , e em seguida retira discretamente dos bolsos do colete quatro envelopes e os repassa . Amplos sorrisos se desenham naqueles rostos rudes , garantia o mês . Assim que fez isso , aquele senhor retira de um outro envelope uma fotografia e a adianta para eles , era uma outra ‘missão’, outro alvo .
- Ajudante daqueles “ abelhudos “ – e novamente aquele gesto do indicador fazendo zás na garganta .
Dessa vez era um colega deles que atuava no mesmo armazém , até houve algum dilema inicial , porém valeria mesmo aquele ‘máxima ’ dos fins justificarem os meios , fazia parte desse “negócio” , e depois ele jogava do outro lado . Em um final de expediente noturno lá estava o alvo solitário naquele armazém , este até ficou feliz de vê-los ali . No final foi convidado a entornar uma com os amigos , embarcaram na camionete e tomariam rumo à Rodovia SNAPP .
À medida que os “incômodos “ iam sendo resolvidos , cada vez mais paparicados ficavam , iam ganhando missões mais ousadas . Agora seria uma espécie de “coroação” quando da chegada de um cargueiro norte americano cheia daquelas mercadorias tentadoras , era um file mignon que abarrotaria aquele armazém . Em jogo , muito dinheiro e mercadorias . Para aqueles quatro podia significar a aposentadoria , levar uma vida retocada , honesta , sem riscos , sem esforço , eles com suas famílias .
Os obstáculos a serem removidos : alguns membros da tripulação que conseguiram se plantar discretamente em alguns pontos do armazém , até vestiam casacos onde nas costas estava escrito Port of Pará , era como se fossem do sindicato .
Só que nessa estratégia quase perfeita havia uma falha passada batida , mas percebida por aquele quarteto : apesar dos casacos e sua aura de autoridade, aquelas pessoas que os trajavam tinham tipo físico diverso do da região, todos em comum de olhos puxados e cor amarela .
Pistas assim facilitavam a parada .
E o clima tropical dá uma mãozinha , o calor reinante no interior do armazém os faziam sofrer bem mais do que os demais já acostumados aos rigores . E de um flash viria a ideia luminosa e simples , atraí-los um a um pelo desejo de um copo d’ água : Paquitão que já tinha mapeado todos os ‘ intrusos ‘ trafegaria com um copo junto ao primeiro deles , logo um par de olhos orientais se tornava aceso como que por cobiça ao precioso líquido , tempo que era levado até a porta de saída onde estava Xizão . Aquele primeiro da lista será recepcionado por este que envolve um dos seus musculosos braços aos ombros dele , sendo então levado para a área externa . Quando passam ao lado de uma camionete estacionada ele o empurra com força em direção à ela , tempo que a porta traseira do veículo se escancara . Dali ,com um bote elástico e perfeito , Macacão o puxa para dentro , ali o infeliz da hora terá seu destino selado . Xizão só aguarda que da janela venha o sinal positivo de consumado . E assim sucessivamente vem outro e mais outro nesse traz pra cá que não voltará pra lá , e tudo isso sem eles entenderem patavina do idioma de Shakespeare , ou outro que fosse , bastou-lhes a mímica para convencerem aqueles ‘intrusos’ serem levados para uma ratoeira da qual não sairiam vivos .
E a caça se dá por terminada .
Acomodando vivos e mortos em um exíguo espaço , a camionete dá a partida , segue para aquele local já de muito estabelecido , ali seis corpos de terras longínquas adubarão terras amazônicas, juntamente com os infelizes dos dois abelhudos e daquele ajudante que por ali já ‘descansavam ‘ .
A empresa de navegação acusa o golpe , mas resolve por não dar queixa sobre aqueles desaparecimentos, é que ela também estava atuando de forma ilegal ao fazer que alguns de sua tripulação se passassem por membros do sindicato local , e para vigiarem brasileiros. Nem um pio , engoliu o choro .
E como planejado , aquele quarteto agora se aposentava . Com aquelas economias extras feitas à margem da lei , montaram um escritório de agenciamento de mão de obra portuária . Agora tornadas pessoas respeitosas ,tinham tudo que almejavam e um futuro promissor garantido para suas famílias . Isso eles fizeram , moral e ética à parte , com perfeição .
Quanto às vidas que subtraíram no decorrer daquelas “atividades” , deixaram tudo à cargo do Supremo Juiz do Universo . As circunstâncias serviriam como bons atenuantes, o que tinha ficado pra trás , lá ficou .