O ESPELHO

O ESPELHO

Um gesto simples e vaidoso de Marina era olhar-se no espelho, cada vez que se achava em seu quarto. Lhe parecia mais uma atitude insegura, sentar-se diante do espelho para certificar-se de que só com a maquiagem sua beleza física se realçava, e ela sorria satisfeita em ver-se bela; porque toda vez que a tirava, a realidade do rosto gasto pelo tempo, com as rugas salientes e a pele flácida, lhe revelava o avanço da idade carnal; e ela então se entristecia, se achava feia, sentia-se incapaz de continuar vivendo, e lhe fluíam do semblante abatido, copiosas lágrimas.

Em seu devaneio melancólico, Marina, na solidão de sua vida sexagenária, imagina que ao longo dos anos, morre-se aos poucos, pelo desgaste natural do corpo, e o que gerou foi uma beleza ilusória, uma máscara de maquiagem na fisionomia, para esconder o limiar da velhice carnal. Não se casou. Não constituiu família. Não teve filhos. A sua relação com os homens sempre foi de namoro, de caso, de sexo ocasional.

O que lhe resultou em vários abortos, com risco inclusive de também morrer. Foram muitos anos levando uma vida desregrada. Fumava, bebia, consumia outras drogas; perdia-se em noites viciosas, frequentando bares, boates, cabarés, bem como era levada à prática de orgias libertinas. Filha única, morou com os pais até o final da adolescência. Depois entregou-se aos vícios e abandonou o lar, para conviver com jovens desregrados, morando em recintos inseguros, em locais marginais, sem nenhum objetivo de vida decente, construtiva.

Após muitos anos sem ver os pais ou ter alguma notícia deles, encontrando um amigo da família ao acaso, soube que os mesmos tinham morrido. A partir daí, Marina, sem saber bem o porquê, resolveu deixar a sua vida incerta, viciada e marginal, e voltar pra casa que seus pais muito provável deixaram pra ela, a única e principal herdeira. A casa estava fechada.

A chave, guardada na casa da vizinha, moradora ali há muitos anos, que se surpreendeu com a presença repentina de Marina. A senhora quase não a reconheceu, pois a última vez que a viu, era uma adolescente; e estava no momento bem mudada, imaginando que na verdade, ela estava com a aparência sofrível, estragada, envelhecida.

Evitando uma conversa prolongada, pra não dizer à vizinha detalhes de sua vida até então, pediu-lhe licença e foi abrir a casa. Ao entrar, andou pelos cômodos e viu que os móveis simples estavam nos devidos lugares. Também viu que tinha que fazer uma boa faxina, pois a poeira predominava em toda a casa. Pegou um pano sujo sobre a mesa e limpou parte do sofá poeirento pra sentar-se.

Ali ficou por algum tempo pensativa. Lembrou-se que ali nasceu, ali cresceu e dali foi embora, sem jamais ter a boa vontade pra visitar os pais. Achou que foi ingrata com eles. Que devia os amar e os respeitar. Ao invés disso, os abandonou e os desconsiderou. E tão imatura, ainda sem a compreensão de viver a vida decente, foi vivê-la de qualquer jeito, entregando-se aos vícios e à marginalidade.

Depois de muitos anos ela voltou pra casa, mas não queria que fosse daquela forma, sem o apoio e carinho dos pais, já mortos. Por alguns instantes, uma dorida saudade lhe invadiu o espírito triste, e sentiu-se indigna e culpada, por não os visitar durante o tempo de sua ausência, e por não dar-lhes a atenção merecida.

Já prestes a anoitecer, ela interrompeu os pensamentos e entrou no quarto que os seus pais dormiam. Sentia-se cansada e confusa no tocante ao que fazer de sua vida dali pra frente. Tirou o lençol da cama e o sacudiu, forrando-a de novo com o mesmo lençol. Nem teve ânimo de abrir o guarda-roupa, pra ver se tinha outro mais limpo. Sacudiu os travesseiros e também o cobertor, com o qual devia agasalhar-se; fechou a casa, apagou a luz e logo deitou-se, deixando que o sono lhe envolvesse profundamente.

Marina acordou disposta. A casa não tinha nada pra comer nem beber. Ela abriu a geladeira e viu-a vazia e desligada. Encheu dois vasos plásticos com água pela torneira da pia, ligando em seguida o refrigerador. Ainda não sabia o porquê, mas a casa tinha água e energia. Soube depois pela vizinha, que um parente da família vinha todo mês olhar como ia a casa e atualizar os recibos de água e luz. A vizinha também lhe disse que o tal parente, um homem de meia idade, lhe perguntava se ela, a sobrinha dele, havia aparecido. Como lhe dizia que não, ele apenas respondia: - se também não morreu, um dia ela vai aparecer, pra tomar conta de sua casa, herdada de seus pais.

Acordou com fome, mas antes de fazer compras pra abastecer o lar, tinha que deixá-lo limpo. Não era adequado deixar a faxina pra depois. Tinha que fazê-la logo. Ela passou toda a manhã faxinando a casa. Quando concluiu o serviço, tomou um banho e após saiu pra fazer as compras. Com quarenta anos, Marina no entanto, aparentava ter mais idade. Resultante de sua vida sofrida, envolvida nos vícios, desregramentos e libidinagens mundanas. Morena clara, cabelos longos e lisos, estatura mediana, olhos castanhos amendoados e forma corporal sedutora, contribuíam pra até então lhe conservar uma certa beleza física, cuja maquiagem no semblante, era um recurso estético que lhe ajudava em se transformar numa atraente mulher.

Feita as compras, Marina pegou um táxi e voltou pa casa. Trouxe uma quentinha pra encher o estômago, pois tremia de tanta fome. Sabia cozinhar. Só depois de comer é que com calma, arrumaria as coisas compradas na despensa e na geladeira. Mais tarde, faria algo pra comer de noite. Como fumava, habituou-se a tomar cafezinho várias vezes, ao longo do dia e da noite, até a hora de dormir, cada vez que acendia um cigarro; ou então, durante o consumo de bebida alcoólica, que também não ficava sem fumar. Lembrando-se disso, acendeu a boca do fogão, botou água pra esquentar e quando esta ferveu, mesclou-a com o pó, em seguida coou, pondo o café quente pra ser conservado no quente-frio.

Com a casa limpa e arrumada, Marina tomou um gole de café, acendeu um cigarro, e foi sentar-se no sofá pra descansar e pensar. Apesar dos pais terem morrido, ela tinha voltado ao lar, onde nasceu e cresceu. Lamentava a ausência carnal definitiva deles, mas ela estava viva, e tinha que pensar em como ia sobreviver. Estudou muito pouco. Não tinha nenhuma profissão. A única coisa que sabia fazer pra sustentar-se, era vender o próprio corpo ou prostituir-se. Ela sempre agiu assim, quando precisava de algum dinheiro. Onde estivesse, em alguma casa com amigas, tinha que ter um espelho, pra olhar-se, maquiar-se, vestir-se e depois sair de noite para os bares, boates ou pontos de prostitutas, à procura de algum homem que quisesse se satisfazer com ela.

Pensando assim, sentindo-se incapaz pra aprender qualquer atividade decente, que lhe garantisse o pão de cada dia, ela decidiu continuar se prostituindo, só que, ao contrário de antes, receberia a clientela em sua própria casa. Faria de seu lar um discreto prostíbulo. Evitaria amizades o máximo que pudesse com a vizinhança, sobretudo com mulheres, pra não despertar curiosidade acerca de sua atividade clandestina e pervertida. Além disso, como era usuária de drogas, daria um jeito de contactar com algum intermediário de traficante, pra também as comerciar em seu lar. Foi dessa forma que Marina, sentada no sofá, entre um cafezinho e um cigarro, durante boa parte da tarde, traçou seus planos futuros, os quais, deveriam logo serem postos em prática, mesmo sabendo dos riscos e dificuldades, fruto das duas atividades perigosas que iria dali pra frente desempenhar.

Entre o final da tarde e o início da noite, ela aprontou a comida pro jantar. Enquanto isso, os novos projetos de vida não lhe saíam da cabeça, os quais, a deixavam ansiosa pra serem logo executados. Sentindo-se cansada, devido os afazeres do dia, resolveu tomar um banho pra refrescar e relaxar o corpo. Os móveis deixados por seus pais eram do tipo antigo. Marina saiu do banheiro e entrou no quarto. Notou que nele havia uma cama, um guarda-roupa e uma penteadeira, que ficava ao lado da cama. Uma cadeira, quatro gavetas e um espelho a compunham. Ainda despida, ela sentou-se diante do espelho e viu-se refletida. Sorriu vaidosa e ficou durante alguns instantes admirando-se. Imaginou enfim, que se sentaria ali muitas vezes, pra ver-se e maquiar-se, pois a atividade a ser exercida, exigia que ela estivesse bela; e o espelho, obviamente, após vestir-se e maquiar-se, lhe mostraria a beleza física, tanto do corpo como da fisionomia.

Não iria sair naquela noite. Deixaria pra iniciar o que pretendia na noite seguinte. Vestiu-se como se já fosse dormir e foi colocar a comida no prato pra jantar. A casa situava-se num bairro periférico. O terreno era grande. A área construída ficava recuada do alinhamento da rua. Havia um certo espaço, entre o muro baixo com portão e a varanda na frente da casa. No fundo, um amplo quintal limitava-se com uma pastaria. Apesar de simples, a casa era funcional e com algum conforto, transparecendo assim, alguma privacidade. Marina, pelo visto, sentia-se bem em nela morar, pois lhe parecia um aconchegante refúgio doméstico. Ela jantou. Tomou um pouco de café. Acendeu um cigarro. Ficou um pouco na varanda, pra sentir no corpo a fresca da noite. Depois recolheu-se e foi dormir.

Os anos foram passando e Marina foi desenvolvendo com êxito, as duas atividades teoricamente arriscadas. Experiência, discrição e serenidade eram requisitos indispensáveis pra obter-se um bom resultado, e isso ela conseguia sem lamentar-se. Ocasionalmente lhe ocorria algum problema, alguma dificuldade, que logo eram resolvidos por ela. Coisas como, algum cliente bêbedo, que não conseguiu satisfazer-se, chateando-se e botando a culpa nela. Outro que a usou, mas tinha gasto todo o dinheiro e não lhe disse, ficando de lhe pagar depois, quando desse vontade novamente de a usar. Mas eram empecilhos que lhe ocorriam de vez em quando. Quanto ao comércio das drogas, a maioria dos usuários pagavam no ato da compra. Porém, acontecia de algum está sem o dinheiro, e lhe pedia pra pagar depois. Quem agia assim, ela lhe advertia que não podia ficar sem pagar, mesmo depois, pra não haver complicações futuras; e o usuário, temeroso de ser perseguido por conta do débito, acabava pagando.

Marina não tinha amizade íntima com ninguém da vizinhança, pois não queria expor os detalhes das atividades que exercia. Se alguém desconfiava, tampouco lhe abordava sobre o que ela fazia pra sobreviver. Nem mesmo com a vizinha que morava colada com a casa dela. Que também não lhe indagava sobre nada do que ela fazia. Quando o tio dela, irmão de sua mãe, soube que ela tinha aparecido, só teve com ela uma vez, na única visita que lhe fez, e depois não voltou mais. Estranhamente, não houve entre eles, o que seria natural, uma convivência parentesca.

Durante o dia, Marina não recebia ninguém que lhe fosse cliente, nem pra fazer sexo nem pra comprar drogas. As duas atividades eram exercidas de noite. De dia ela saía, às vezes pra resolver alguma coisa, fazer algum pagamento, ou simplesmente passear, sobretudo no final de semana. Quando se divertia de dia, distraindo-se em parques, em praças ajardinadas, e de noite em algum bar ou boate até altas horas, quando vinha com algum cliente, geralmente de carro, pra satisfazê-lo sexualmente como meio de vida em seu lar.

Decorridos vinte anos, a sorte parecia favorecer Marina, até quando não se sabia. Ela apenas vivia, trabalhava em seu negócio lucrativo, e de certa forma, sentia-se feliz, sendo o jeito apropriado que encontrou pra manter-se viva carnalmente. Com o dinheiro que ganhava, gastava uma parte com as despesas da casa e precisões pessoais, e a outra parte ela depositava na poupança, visando garantir o futuro quando a velhice chegasse. Em todos esses anos, paradoxalmente, ninguém a importunava. Nem os vizinhos, tanto os mais próximos como os mais distantes de sua casa; nem as pessoas do bairro onde ela morava. Nem mesmo a polícia até então, havia lhe abordado, suspeitando de seu negócio ilegal.

Desde que decidiu comerciar as drogas, quem lhe intermediava, lhe aconselhou a ter uma arma em casa. Alertando-a que não se podia está num negócio desse tipo sem nenhuma proteção. E a arma nesse caso, como precaução, era indispensável. E conseguiu uma arma pra ela, lhe convencendo a comprar por um bom preço no contrabando, que ela a guardava em seu quarto debaixo do colchão.

Quando completou sessenta anos, Marina não tinha mais a beleza e o vigor físico de sua juventude. Os clientes não mais a procuravam com a mesma frequência, nem mais tinham por ela, tamanho apetite sexual. Apenas alguns mais idosos iam vê-la, mais pra conversar, pra desabafar, pra receberem algum carinho, algum afago que ela sabia tão bem fazer. Queriam a compensar com isso, deixando-lhe algum dinheiro, que ela, às vezes aceitava, às vezes não. Ou seja, na prática, estava sendo quase uma ex-prostituta.

Alguns móveis antigos foram trocados. Mesmo ela tendo cuidado, foram gastos pelo tempo de uso. Em seu quarto, ela trocou a cama e o guarda-roupa. Mas não quis trocar a penteadeira, porque o espelho que fazia parte dela, era o jeito que achava pra olhar-se, pra envaidecer-se, pra maquiar-se, mesmo que não fosse receber ninguém pra fazer sexo; mesmo que a beleza física lhe estivesse decadente; porque no fundo, ela via no espelho, o seu fiel amigo, lhe consolando a mágoa, a tristeza, a solidão, que ela se desabafava, espelhando-se fisicamente.

Aos sessenta e dois anos, confidenciou ao intermédio que lhe passava as drogas, que desistiu de prostituir-se. Estava cansada e sem atrativo pra seduzir os clientes, que decerto, queriam aprazer-se com mulheres mais jovens do que ela. Os primeiros sinais de sua velhice eram evidentes. E quanto às drogas, algo lhe dizia no íntimo, que devia desistir também de as comerciar, antes que alguma coisa de ruim lhe ocorresse. O intermédio então, lhe prometeu que conversaria com o seu chefe. Que aguardasse mais um pouco, logo lhe dizendo algo a respeito do assunto.

Uma certa noite, Marina não quis jantar. Apenas tomou um pouco de café, acendeu um cigarro e foi sentar-se na varanda. Estava habituada à solidão. Entretanto, uma estranha tristeza lhe incomodava. Pensou nos pais, como se estivessem ali, vendo e sentindo sua súbita aflição. Eles tinham morrido há muitos anos. Viviam agora como espíritos desencarnados num outro plano. Será que ela pressentia que também ia morrer? Por que estaria imaginando que era chegada a hora dela ir pra perto de seus pais na espiritualidade? Um calafrio a fez levantar-se e entrar temerosa, fechando a porta da frente da casa. Agora no quarto, continuou com a angústia que lhe impacientava. Não tinha o hábito de orar, mas rezou o Pai Nosso e benzeu-se.

No bairro que morava, Marina era mais conhecida, pelos homens que a queriam pra fazer sexo, e pelos usuários de drogas. Seguindo as regras dela, essas pessoas não a procuravam de dia. Contudo, bastava anoitecer, para que sua quietude doméstica se modificasse. Primeiro ela atendia os usuários de drogas, que vinham no transcorrer das primeiras horas da noite. Em seguida, ela atendia os homens interessados nos prazeres sexuais. Ela tinha o hábito de anotar na caderneta, os nomes de seus clientes, no tocante às atividades distintas. Posto que, desde a primeira ocasião que usavam os seus serviços, a maioria deles tornavam-se seus fregueses assíduos.

Quieta no quarto, sem saber o porquê, ela assustou-se com o som da campainha. Ficou em dúvida, se devia atender o cliente ou não. Só não entendia o motivo do temor, porque, sendo uma negociante doméstica, estava acostumada a ouvir de noite, a campainha tocar. Saindo trêmula do quarto, indagou:

- Quem é?

- Venho aqui a primeira vez. A senhora não me conhece. Um amigo me informou que vende drogas. Quero comprar pequenas porções. Caso goste do produto, serei um fiel freguês.

Ouvindo aquela fala educada, gentil, tranquilizou Marina, que logo abriu a porta.

- Boa noite. Entre, por favor.

- Boa noite, senhora.

- Realmente, não conheço o senhor. Que droga quer?

- Pequenas porções de maconha e cocaína. Como lhe disse, se gostar, compro porções maiores. Tenho condições de pagar.

- Sente-se, por favor. Vou preparar o que quer e logo lhe trago.

- Está bem.

Marina entrou no quarto. A droga ficava guardada dentro de duas caixas de madeira debaixo da cama. Ela abriu-as e separou as pequenas porções que o cliente, até então desconhecido, lhe pediu. Apesar da boa aparência, ela notou no homem, algo volumoso por debaixo da camisa, que o tornava corpulento. Desconfiada, pensando que talvez fosse um colete à prova de bala, pegou sua arma, botou dentro da bolsa e saiu do quarto pra lhe entregar as porções.

- Aqui está, senhor.

- Muito grato, senhora.

Após pagar a compra, Marina lhe ofereceu algo pra beber.

- Aceita um café, alguma bebida?

- Só um pouco de café.

Enquanto botava o café na xícara pra servi-lo, ouviu dele o que não queria ouvir:

- Senhora, eu sou um investigador da polícia civil. Recebemos há alguns dias atrás, uma denúncia anônima, informando que a senhora há muitos anos, tanto se prostitui como vende drogas em sua casa. Ao comprovar agora, a verdade dos fatos, a senhora está presa por atentado ao pudor, e pela prática ilegal e criminosa de comerciar drogas.

Desesperada, Marina, que nunca tinha usado a arma pra atirar em ninguém, meteu a mão na bosa, e antes que a disparasse no policial, ele foi mais rápido e deu-lhe um tiro à queima roupa. Marina caiu ensanguentada. Sacudiu-se por breves instantes, até a inércia definitiva do corpo morto.

Com o impacto do tiro, seu perispírito desligou-se da vida carnal extinta, e foi logo levado por espíritos malfazejos, para alguma região umbralina da espiritualidade. Sentindo dores e sem saber o que lhe ocorria, foi abandonada numa casa, que parecia ser a sua casa carnal, tirante a imundície que lhe predominava. Debilitada, em estado de penúria existencial, sentia-se viva mas não entendia o motivo de está naquele recinto imundo. Ela gostava da limpeza corporal e mantinha sua casa sempre limpa. Lembrou-se das etapas de sua última encarnação, até o momento que gerou sua morte física. Sentia dor em todo o corpo, mas a dor mais forte era no coração, atingido pela bala que fez seu corpo morrer. E se indagava: se seu corpo morreu, por que sentia-se viva naquele corpo que era igual ao corpo morto? Alguém decerto, em algum momento, tinha de lhe dá uma explicação convincente, imaginava.

Marina não saía, nem a deixavam sair daquela casa que parecia ser a que habitou em vida carnal. Espíritos viciados em sexo e em droga, que ela não os conhecia, apraziam-se em está com ela, mas a mantinham encarcerada naquela sujeira doméstica. Ela não sabe por quanto tempo ficou naquele local repulsivo, num sofrimento que parecia não ter fim.

Numa noite qualquer, estranhamente, nenhum espírito viciado e mau cheiroso apareceu, pra se divertir e zombar dela. Sendo que, ela também produzia as mesmas energias ruins, os mesmos fluidos pesados, as mesmas vibrações negativas, só que não admitia o seu estado vicioso e de impureza consciencial. Concentrou-se e começou a refletir sobre a própria vida. Lembrou-se então, que esqueceu de olhar-se no espelho. Temia voltar a fazer aquele gesto tão comum e agradável pra ela. Temia ver-se feia, horrorosa, desfigurada no espelho, não por fora, mas por dentro de si.

Queria então, melhorar a sua vida. Corrigir os seus erros. Renovar-se. Ser uma nova pessoa. Se estava viva. Se a morte era uma ilusão, era porque Deus Misericordioso podia lhe dar uma nova oportunidade, desde que, mudasse a sua conduta pra melhor. Pedia com humildade que Deus cuidasse dela, tirando-a daquele sofrimento, daquele jeito horrível de viver. E Lhe pedia perdão, pelo mal que fez a si e ao próximo, pois sua vontade íntima, lhe dizia, com toda força benévola, que almejaria exercer o amor e o bem, absorvendo-os e semeando-os em seus atos construtivos. Por fim, clamou a Deus, Lhe pedindo permissão para que seus pais viessem lhes visitar e lhes socorrer.

De repente, perdeu o medo de olhar-se no espelho. Correu as vistas em derredor e constatou a casa limpa e iluminada. Sentiu-se mais leve e mais confortável. Imensa alegria lhe invadiu o espírito. Deu alguns passos e sentou-se diante do espelho. Admirou-se de ver-se bela e rejuvenescida sem o artifício da maquiagem. Emocionou-se quando seus pais, atrás dela, também se refletiram luminosos. E exclamou:

- Papai, mamãe, são vocês mesmos?

- Sim, minha amada filha, somos nós.

- Orei e pedir a Deus que vocês viessem me socorrer. Que quero corrigir os meus erros. Que quero renovar minha vida.

- Filha, explicou sua mãe - Deus nos dá inúmeras ocasiões de melhoria, desde que tenhamos o bom senso de querermos e exercermos essa melhora. Se você quer, vai melhorar sim.

- Verdade, filha, continuou seu pai - O espírito eterno evolui continuamente. Cobre-lhe dois corpos, o físico e o fluídico. Quando o corpo físico morre, o corpo fluídico continua a cobrir o espírito, na próxima dimensão existencial. Num plano, o espírito atua encarnado. Noutro, ele atua desencarnado. Quer dizer, o espírito, ou o princípio espiritual individualizado, que se constitui em essência a vida eterna, muda de casa, de plano, mas jamais perde a razão, a consciência pensante, a suficiência de saber de si e das coisas, conforme evolui.

Marina pensou um pouco, depois disse aos pais:

- Estou muito feliz de voltar a vê-los. Senti muita saudade e culpa também, por ter fugido, deixando de conviver com vocês, em nossa última encarnação na Terra. Eu sei que, quando voltei pra casa, ao invés de me corrigir, continuei errando, sucumbindo em minhas provas expiatórias. Sofri no umbral por um tempo considerável. Mas o meu espírito está disposto em se transformar pra melhor. Que Deus me ilumine. Jesus me abençoe. E os Bons Espíritos me confortem.

- Que assim seja, filha! Lhes respondeu seus pais.

- Quero que saibam que amo vocês de verdade. E peço-lhes perdão, pelos momentos de desamor e desatenção que tive com vocês.

- Sabemos que você nos ama. Está perdoada.

Sorridente e feliz, Marina quis saber:

- E agora, papai, mamãe, para onde vamos?

E sua mãe lhe respondeu:

- Nós vamos lhe levar para um posto de socorro, que fica próximo daqui. É uma espécie de hospital emergencial, onde espíritos recém-desencarnados ou saídos do umbral, vão receber os cuidados necessários para recuperar-se. Lá, os socorristas, médicos e enfermeiros do Além, tratarão de seu perispírito enfermo e de suas perturbações psíquicas, bem como, vão lhe orientar acerca de como fazer suas correções morais. Lhe deixando em condições pra exercer novas atividades benfazejas, tanto no plano desencarnado como encarnado, visto que, certamente, você se submeterá no tempo oportuno, a novas e edificantes encarnações.

Adilson Fontoura

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 24/01/2021
Reeditado em 06/06/2021
Código do texto: T7167730
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