Somente um segundo
A linda promessa daquela festa, um brilho singular, nem mesmo a fina chuva que caía incomodava naquela noite de réveillon. Seria então um dia feliz e de comemoração. Inesquecível certamente.
O barco escolhido para passarmos o ano novo era pequeno, porém charmoso. Chegamos cedo e garantimos um espaço no que com o passar dos minutos se tornou um formigueiro, naquele ambiente fechado e superlotado me sentia sufocada e por algumas vezes preferi tomar um ar no convés superior.
Mas com o tempo passando a angustia crescia em meu peito. Algo não estava certo.
Apressei-me em encontrar meu noivo após tomar um ar, mas era difícil naquele mundo de gente, agora as ondas pareciam se agitar com mais força, esse é o mar aberto, e então ocasionalmente objetos deslizavam ou caíam.
A incerteza do vazio que o mar pode provocar dentro de nós pode se tornar especialmente dolorosa quando se percebe o quão pequeno você é em comparação a ele. Grande e imponente. Infinito. Sentia o medo devorar meu ser. Cada segundo que passava ampliava a minha agonia e não encontrar meu amado não aliviava a situação.
Acometida por um enjoou resolvi que precisava ir ao banheiro, na parte inferior do navio, talvez pelo caminho esbarrasse nele, como nas vezes que resolvemos parar de procurar algo e a coisa perdida simplesmente dá o ar da graça em algum local que você tem certeza que já procurou.
Meu vestido agarrou em algum lugar e sem perceber acabei por puxar um fio da costura. Efeito de perambular com a visão escurecida através da multidão.
Então novamente a onda de ansiedade me atingiu, aqui dentro o mar de gente, lá fora o escuro e sombrio mar revolto, eu me senti sem saída, sem ar, presa.
No banheiro o pânico se intensificou, o sentimento de balanço piorava e com isso o enjoou aumentava, colocar para fora toda aquela angustia não aliviou o tanto quanto pensei que aliviaria já que na tentativa de dar descarga, a água subiu pela privada no lugar de descer.
A sensação ruim tomou forma, agora eu tinha certeza que alguma coisa muito errada estava acontecendo, a água suja molhou meus sapatos novos, mas não me importava tanto quanto escapar daquela situação infernal.
A claustrofobia não dava trégua e os corredores pareciam diminuir, as pessoas multiplicar e o incessante barulho do oceano parecia anunciar uma iminente catástrofe. “Está tudo bem, é só paranoia” pensei enquanto tentava me acalmar respirando fundo.
No salão principal tentei encontrar a mesa onde deixei meu noivo, já não faltava tanto para a meia noite, precisava reencontra-lo para acalmar aquela angustia em seus braços. Para afastar de vez aqueles pensamentos. Um burburinho começou enquanto eu me desculpava por esbarrar nas pessoas, questionamentos sobre a visível superlotação e o balanço quase insuportável do barco, mais pessoas se uniram aos questionamentos e as vozes sobressaltavam a música.
Mas já era tarde, um minuto muito tarde, um segundo muito tarde. Um som metálico cresceu e as luzes piscaram, estávamos perto de conseguir chegar ao nosso destino, eu sentia isso com todo meu corpo, mas qual seria o destino que me aguardava além daquele mar?
As pessoas se aglomeravam na tentativa de chegar ao convés superior, os objetos deslizavam pelo chão, caíam dificultando a passagem, os gritos se intensificavam, o desespero tomou conta daquelas pessoas, tantas pessoas...
"Por que tem tantas pessoas?"
Talvez o meu medo fosse tão intenso que inibia certas coisas, meu coração batendo era o mais alto som que conseguia ouvir, exceto pelos eventuais rugidos metálicos, em minha visão apenas as oportunidades de passar me chamavam atenção. Ser salva era tudo o que eu queria. Escapar daquela terrível situação, mas parecia cada vez mais impossível.
Na parte superior as pessoas saltavam para o denso mar, ou eram jogadas a medida que o barco adernava, não sei dizer, talvez este seja o momento em que eu perdi as esperanças definitivamente. As esperanças de me salvar e de encontra-lo novamente. Enquanto aceitava o meu fim me virei para o que sem dúvida se tornaria o meu túmulo.
Um lugar que agora parecia comum, molhado e revirado. Um final que parecia cinematográfico, mas injusto. Solitário e triste.
Em minha mente uma última vez me veio a imagem do meu amado, aquele sentimento aliviou a dor de ser engolida pela escuridão. Me fez sentir apenas por um segundo que não estava sozinha.
Os gritos foram abafados pela queima de fogos que anunciavam o novo ano que chegou. Lá fora o mundo não fazia ideia daquela tragédia, das crianças chorando, das famílias destruídas, da dor, da morte e do medo do desconhecido.
Da nossa história que foi engolida pelo mar.