O anjo suicida
Aqui do alto eu vejo uma moça, bonita, morena, de cabelos compridos até a cintura; magra muito magra e de olhar triste. O verde do teu olhar me desperta certa curiosidade. A linha do trem, o movimento tresloucado dos vagões indo e vindo e eu preciso decidir o destino dela. No ouvido um chamado: decida logo de uma vez. A moça sofre, eu também, pois odeio o que faço, entretanto, não tenho escolha é o destino.
As mãos suam e eu vejo a moça ajeitar os cabelos para o lado. Ela senta, cruza as pernas e espera. Plataforma lotada, trem parado, gente entrando e saindo. Aqui do alto eu observo homens se aproveitando da fragilidade alheia das meninas e vejo meninas, também desfrutando de suas meiguices, pura inocência.
O trem parte, gente espremida tentando sorrir pelo vidro. A moça agora de pernas descruzadas se levanta e anda lentamente pela plataforma, parece perdida. De um lado para o outro, os braços caídos ao lado do corpo magricelo, o brinco de argola balançando para lá e para cá, o sorriso se desmanchando na cara e uma lágrima escorrendo do rosto, solidão.
Pego a minha flecha e aponto. O trem se aproxima velocidade total. A moça olha para os lados e não enxerga ninguém ou pelo menos sua vista não permite, está tudo tão embaçado, sem nexo algum. O corpo cai, mas ela não é atingida. A dor na nuca é terrível, o joelho ralado e um pedaço da camiseta rasgada na altura do ombro.
Respiração ofegante. Gente a volta dela formando um circulo. Ela olha, ela chora. Um senhor vestido de terno e gravata e maleta preta se abaixa perto dela. Os curiosos se afastam. Tudo parece confuso. A moça aos poucos vai se levantando. Ela parece aliviada e eu também; ela vai ter uma segunda chance.
Na calmaria do paraíso ou na agonia do inferno tudo é tão igual. A mesma moça de ontem, sentada no banco de uma praça. Se no dia anterior ela estava cercada por um bando de abutres, dessa vez estava rodeada por lindas árvores. Um senhor carregando bastante idade e uma mochila de isopor transportando algodões-doces, a moça olha e sorri timidamente. Este senhor, encantado pelo belo e reluzente sorriso da moça lhe oferta um algodão cor-de-rosa, ela estica o braço e sorri agradecida.
- Você é muito bonita- Diz ele com sua voz fraca de idoso.
- Obrigada. – Ela diz tirando um pedaço do algodão e levando a boca.
A moça enfia a mão no bolso da calça a procura de uma moeda e nada encontra.
- Não se preocupe com isso, foi um presente. Vim andando e apesar da vista envelhecida eu pude perceber o quanto está triste. Dei o algodão pra te animar. Espero ter ajudado.
- Um pouco. Obrigada.
- Desculpe, mas seu braço está ralado? – Indaga o senhor. Ela olha de relance e fica calada por um tempo. O senhor retira a mochila de algodões das costas e senta ao lado dela. – Tudo bem, se não quiser falar não precisa.
- Eu tentei me jogar na frente de um trem. – A voz tremida, a boca tentando processar as palavras. O velho abraça a moça e ela se conforta dentro daquele abraço.
- Tudo bem. Eu sei muito bem como se sente. Quando eu era novo tentei fazer a mesma coisa, só que de um jeito diferente, mas isso não vem ao caso. – Ele concluiu.
Fiquei abismado com a atitude daquele senhor. Fui mexer nos meus arquivos e lembrei-me de quando eu o salvei. Ele era um rapaz de pouca idade, bonito, e bem sucedido financeiramente, mas pôs tudo a perder quando foi vítima de um golpe de um dos seus sócios. Ele não merecia morrer, assim como essa moça também não merecia, por isso o poupei desse grande calvário.
Ainda não decidi como será a vida dessa moça a partir de hoje. Estou pensando em fazer desse humilde vendedor de algodões-doces um mentor para ela.
Vi os dois caminharem pelo parque, ele carregando seus algodões e ela ao lado dele, de sorriso tímido e olhar distante.
- Minha família não gosta de mim. – Disse ela.
- Gostam sim, todos gostam. É que às vezes eles não sabem demonstrar.
- Não acredito nisso. Sempre fui mal tratada, inclusive pelo meu padrasto.
- Ele faz alguma coisa com você, ou fez?
- Me batia. Uma vez quase abusou de mim, mas minha mãe impediu. Daí ele... – A voz não queria sair. Ficou fraca, um sussurro apenas. – Ela a matou. – Conseguiu dizer.
O velho segurou com delicadeza não mão dela, não por causa da fraqueza de seus dedos, mas pelo momento.
- Eu tentei me enforcar. – Ele disse. – Não sei como não consegui, pois planejei tudo direitinho, sabe. Porém algo inexplicável aconteceu. Foi como se algo estivesse me segurando e me erguendo, impedindo que meu pescoço quebrasse.
Os olhos fixos da moça no velho enquanto ele fazia seu relato.
- Veja, tenho a marca até hoje. – Disse ele levantando a cabeça e mostrando no pescoço enrugado o desenho de uma corda. – Ficou essa marca aqui. – O velho colocou a mão no local.
- Minha nossa! Deve ter doído muito. – Falou a moça.
- Doeu, mas a dor maior não é física, mas sim na alma. Pessoas como a gente, desiludidas da vida, buscam no suicídio uma forma de sessar o sofrimento, mas o erro é pensar que dessa maneira todo esse sofrimento vai acabar, pelo contrário, ele só estará começando...
- A vida não tem mais sentido pra mim. – Falou a moça.
- Tem sim. Tudo na vida tem um sentido, um proposito. Não pense que foi fácil recomeçar. Fui aprendendo aos poucos como viver. A gente nasce de novo, sabe. E é segunda chance que deus dá para gente é para ser aproveitada da maneira correta.
Aqui do alto fiquei de olhar atento nos dois, sentados lado a lado. A moça sorria um sorriso grandioso e reluzente. O velho, agora de pé colocava sua mochila de algodões-doces nas costas curvas.
- Estamos a conversar há bastante tempo e eu nem sei o seu nome.
- É Sabrina. – Ela disse.
- O meu é Nestor. – Disse ele pegando levemente na mão de Sabrina e a beijando suavemente. – Me promete uma coisa. Se passar pelo parque me procure. É sempre bom conversar, e outra coisa. Gostei muito de você.
- Eu também gostei do senhor. Obrigado por tudo o que disse.
Sabrina levantou-se e foi embora, depois daquele dia os dois não mais se veriam.
2
Nosso Senhor está irritado hoje. Acordou distribuindo raios e trovões por aí, além de chuva, muita chuva. O mundo tem sido uma constante bagunça. Dessa forma, com enchentes, terremotos, é que ele tenta mostrar ao planeta o quanto os seres humanos estão errados, mas infelizmente tem sido em vão.
Ouvi dizer que um asteroide pode ser enviado para consertar tudo, mas dar um fim a algo que deu tanto trabalho para ser construído é valido? Não sei. Há poucos meses ele enviou um vírus pra terra, muita gente tem morrido e muitos ainda irão morrer, mas lamentavelmente nada de melhor ocorreu com o pensamento das pessoas.
Diariamente eu fico a observar daqui de cima o comportamento de todos vocês. Consigo visualizar tudo de bom e de ruim feito na Terra; e o que eu tenho visto não tem sido nada animador, preocupante até.
Hoje eu tenho mais uma tarefa. Ficar de olho em um jovem. O nome dele é Caio. Esse rapaz de vinte e um anos de idade, é de uma família bem estruturada, tem irmãos, mas está desiludido da vida; tudo isso depois de terminar um relacionamento de há muito tempo. Entretanto a moça que ele tanto cultua não é de fato o amor da vida dele. Caso ele mereça ser salvo, a moça irá aparecer assim, sem maiores explicações na vida dele.
Caio está trancado em seu quarto, sentado na beirada da cama ainda desarrumada, assim como está bagunçada a sua vida. Ele se levanta, caminha pelo quarto e abre a gaveta do guarda-roupa e de lá tira um revolver. Apreensão. Na casa um grande silêncio, todos estão dormindo. Revolver na cabeça, mãos desordenadas, o gatilho puxado, o barulho do tiro, seco, triste e sem graça.
A mãe levanta com o barulho, o pai de cuecas sai tropeçando pela casa. Irmãos surgem. Quando a porta do quarto é aberta eles encontram Caio de bruços no chão, a camiseta manchada de sangue, o olho virado, sem vida.
Não venham me perguntar por que eu decidi pelo fim desse jovem, na verdade não sou eu quem decide, é ele, o Nosso Senhor. Caio era um rapaz de vida agitada. Vivia num relacionamento de idas e vindas, de idas e voltas com uma moça. Mulher essa de vida complicada, com pais viciados e irmãos no mundo do crime. Ela também cometia os seus; pequenos roubos, claro.
Caio a conheceu em uma festa no meio de uma rua. Ela de um lado da via e ele do lado oposto, olhares cruzados, sorrisos trocados, e um beijo fez o coração de o jovem despertar para um mundo nada bom.
Drogas pesadas, pequenos roubos e até atirar em outra pessoa ele fez, não matou, mas a imagem da bala atingindo a perna da pessoa morou nos pensamentos dele por um bom tempo. Vida filha da puta, amor bandido. Caio namorou por um par de anos, mas se viu sem saída quando a amada trocou o amor sincero dele pelo amor de outra pessoa. Caio se desenganou. Existir para ele não tinha mais significado, então para que permanecer vivo?
Comprou a arma, de numeração raspada, com um sujeito na rua; pagou em dinheiro, enfiou o revólver dentro da calça e voltou para casa. Escondeu em uma gaveta dentro do guarda-roupa. Ela permaneceu escondida por alguns meses, sem que ninguém da casa pudesse suspeitar, Caio não gostava que mexessem nas coisas dele. No dia do acontecimento, Caio levantou bem cedo e saiu de casa. O irmão mais novo o viu pela janela fechando o portão; Caio vestia calça comprida e blusa, apesar de não estar frio naquele dia. Voltaria mais tarde, quase à noite, sem responder os questionamentos do pai e respondendo grosseiramente à mãe.
Trancou-se no quarto. Apagou a luz, ligou o som no volume máximo e ali ficou por um bom tempo. Percebendo o silêncio da casa desligou o som, levantou-se, e lentamente foi até o guarda-roupa. Gaveta aberta. A arma embrulhada em uma camiseta de cor preta. As mãos não tremiam quando segurou na arma, mas elas tremeriam no momento do tiro certeiro.
Desolação. Mãe e pai de joelhos ao lado do corpo. A mãe segurando a cabeça ensanguentada do filho; o pai sem saber o que fazer. O irmão mais novo, com lágrimas nos olhos, digitava no telefone os três números da polícia. A viatura chegaria. Nada mais poderia ser feito, a desgraça estava presente naquela família.
Aqui do alto eu vejo uma jovem, não sei, mas acho que também irei salvar ela.
FIM....