NA POLTRONA AO LADO..........

ELE afirma não ser ciumento, apenas “cuida do que lhe pertence”: sapato brilhoso de couro marrom, muitos livros, a caixa de som e a churrasqueirinha elétrica do tempo de solteiro... e a mulher. Difícil saber o que um Ariano, (metido a) autoritário, egocêntrico e genioso, mais ama na vida. Entretanto, driblado constantemente por uma Geminiana que entretanto nunca o traiu......... Inventou para ELA um tal de ‘passaporte de segurança’ – anotar saídas demoradas de casa e horário de retorno: jamais usou nem mostrou ao marido a cadernetinha vazia.

O cidadão aniversariou sexta-feira, não poderia faltar ao trabalho e era a última prova bimestral na faculdade noturna. Pela manhã, um super e sensual beijo na boca e as recomendações dele: “Cuide-se. Juízo. Pense em mim o dia inteiro. Virei em casa no intervalo, antes de cinco horas...” De fato, chegou, foi direto ao computador ler mensagens (ELA jurou e tem cumprido nunca mais olhar o Facebook dele e abandonou o dela também); da mulher de casa havia em e-mail o desenho de um bolo de chocolate com chantilly e cerejas, e algumas frases. Veio o jantar caprichado, pontualíssimo. Salada verde, arroz, peixe assado e frutos do mar. Lá pelas nove e meia, bolo verdadeiro, igualzinho, o infalível quindim e ambos se fartaram com as delícias – ELA champanhe, o “menininho” guaraná... Presenteou-o com um VOLTAIRE do sebo e um SARTRE em promoção – comprara com economias desde o final do ano, gordo porquinho de barro com moedas de um real e trocos diários da padaria. Noite de muito amor e carinho.

Sábado, folga geral. (Houve época anterior de escola de idiomas.) A mulher o percebeu ao chuveiro, lavanda no sabonete e na colônia, depois foi direto para o computador, ainda cochilou mais alguns minutos sem perceber que o marido saíra – deu falta da camisa vermelha, preocupação nenhuma, ELE nunca interessado em protestos de rua. (Quais os reais interesses dele?) Conferiu que publicara 4 textos da “sociedade literária” – marido escreve, mulher corrige – aí, “a melhor secretária do mundo” pegou a caneta preta e deu baixa na listona de títulos. Veio para o almoço, sorridente e calado, não percebeu na testa dela o ponto de interrogação; pegou o Vade Mécum, apelido debochadinho ‘vai comigo’, e tornou a sair – não levou fatia do bolo, apenas sobras da cereja ao licor, no vidro. “Vai aonde?” Pergunta dela sem resposta ou olhar enviezado. Voltou tão tarde que ELA pôde simular já estar dormindo......... Onde marido esteve, o que fez, nem SHERLOCK e WATSON descobririam...

Domingo, folga mais geral ainda. Publicou 3 textos às 8 horas. Alegou levar o carro para revisão do motor no posto de gasolina (domingo?), almoçaria na estrada e iria se desenferrujar num futebol com amigos de infância, em cidade próxima (a quantos quilômetros?) – estaria em casa às dezoito...

Voltando ao passado de algumas horas.

No centro da cidade, uma nova casa de espetáculos inaugurada com o festival Três Dias de Nostalgia – telão para cinema, palco para teatro e música, salão para danças. De sexta a domingo, projeções variadas de meio-dia à meia-noite. Entradas de preço baixo, ainda. Pediam fantasiosos trajes femininos de época – ELA reservou uma saia reta comprida, sapato alugado de salto médio e sola dupla, um turbante de crochê... Marido sem interesse algum na novidade (é demais essa falsa indiferença!). Adiantou a comida, o bolo, esqueceu o ‘passaporte’, foi escondida na sessão de duas às quatro, voltaria num táxi ligeirinho. Filmes todos d a década de 50, porém imagens muito boas, restauradas. Em cenário japonês, CASA DE CHÁ DO LUAR DE AGOSTO, um engraçadinho espectador nissei, poltrona ao lado, a chamou de ‘usagi’, coelho-coelha em japonês, palavras soltas ELA conhece muitas. Levantou-se um tanto vaidosa e foi sentar bem longe. Em casa, respeitosa anja enclausurada no 8 de abril. Niver do Gigante!

No sábado, já o imaginando fora de casa por muitas horas, nova fuga inocente. SUPLÍCIO DE UMA SAUDADE. Tristeza. A protagonista duas vezes viúva... Ih, dessa vez poltrona ao lado sem ninguém! Em casa, respeitosa anja enclausurada no 9 de abril. Jantou sozinha. De verdade, totalmente entregue a Morfeu, nem o viu chegar.

No domingo, tentou convidá-lo para o cinema; em vão, porque o rei da casa determinou sua própria recreação. Sem querer, derramou leite na tal saia longa, descolou o salto de um dos sapatos e o gato da vizinha surgiu do nada, estraçalhando o turbante de linha. Voltou ao século XXI – vestido-camisola de sedinha estampada, mistura florida de verde, branco e vermelho, assim tricolores um clube carioca e certo país europeu. Sacudiu a cabeça para evitar pensamentos estranhos e maliciosos...

“Cittá” de Roma, hoje, no terceiro e último dia do festival. Na poltrona ao lado......... ELA percebeu íntima figura masculina de todas as manhãs e escutou maravilhada: “Buona sera, bella signora!” Puro gracejo, porque ESTE é apenas ítalo-descendente e só fala italiano ao recitar de cor, giornalaio na porta da padaria de esquina, os poemas de amor de DANTE. (Mesma faculdade do marido.)

Lado a lado, sozinhos.

Ó, tentação...............................

NOTAS DO AUTOR:

FONTANA DI TREVI – A mais ambiciosa construção de fontes da arquitetura barroca da Itália: 26m de altura, 20m de largura. O gesto tradicional é atirar uma moeda à água enquanto se formula um desejo. Foi cenário do filme estadunidense “Three Coins in the Fountain” e também destaque de uma das mais famosas cenas do filme italiano “La Dolce Vita”, de FEDERIRO FELLI NI, em que a atriz ANITA EKBERG entra na água e convida MARCELLO MASTROIANNI a fazer o mesmo.

FILMES – Pesquise sinopses, caro leitor! - 1 - A FONTE DOS DESEJOS (Three Coins in the Fountain) - 1954, romance dramático: estória de três americanas vivendo em Roma; 2 – CASA DE CHÁ AO LUAR DE AGOSTO – 1956, comédia: oficial do exército americano tenta introduzir democracia na tradicional ilha nipônica do Okinawa ; 3 - SUPLÍCIO DE UMA SAUDADE – 1955, romance dramático: amor entre médica chinesa e jornalista americano.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 26/12/2020
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