O espírito de Einstein e o cocô do guri
- Nossa, que delícia essa lasanha de cinco queijos, dona Helga!, disse Rutinha, repercutida pelos demais...
– Você não vai comer, não, Grilo?, perguntou Rutinha ao magrelo que, no auge dos dezessete anos, somava mais de dois metros e já tinha que se abaixar para passar nas portas da casa de dona Helga, a alemã matrona, viúva e sanguínea que comandava aquele casarão em estilo germânico.
– Não, já tô três dias sem cagar, resmungou o desbocado primo de Rute. Sua mãe já tinha até pego uma colher de pau para dar-lhe na testa, mas foi impedido por dona Helga: – Ah, deixa, Gerda, deixa esse schlambuga, daí sobra mais pra gente, proferiu a gordona simpática e bochechuda. Mas o garoto não se fez de rogado e atacou a maionese e o frango como se também não comesse há três dias.
No meio da sobremesa, um delicioso e macio pudim de leite moça com sorvete de creme, ambos acompanhando um apfelstrudel que nunca ficava menos que fantástico nas mãos de Helga, o guri parou e ficou olhando para a parede, olhos fixos.
– O que é que foi, Edelbert (Grilo, obviamente, era o apelido que a família dava ao pernudo, que o aceitou sem maiores mi-mi-mis)?
– Pô, mãe, não me chama pelo meu nome! É que deu uma dor de barriga agora.
E se mandou para o banheiro. Os demais, irmãs de dona Helga, esposos e filhos e filhas, caíram na gargalhada e continuaram a comilança e a conversa, pois as três irmãs, uma no Rio Grande do Sul, uma em Santa Catarina e outra no Paraná, quase não se viam e o Natal, portanto, era reencontro esperado e usufruído ao máximo...
No acento, Grilo, que tinha abusado nos queijos e chocolates diversos fazia já umas duas semanas, além de não ter saído do videogame pelo menos desde novembro, forcejou tanto que sentiu os olhos circularem nas órbitas e uma pressão de corpo inteiro tão forte que quase o fez desmaiar. Devem ter se passado ao menos uns dois minutos em que o rapaz ficou fora do ar, simplesmente sentindo que algo o deixava por baixo, como uma enorme caçamba despejando sua pesada carga vagarosamente. Quando os olhos voltaram a enxergar, tudo já havia terminado. Um alívio e bem estar total se apossou de Grilo, mente sã num corpo agora também são.
Ao se levantar é que tomou o susto!
- Caraca, véio, que é isso?!, que monstro é esse?
Ele contemplava, com assombro, nada mais nada menos que uma bosta colossal que devia ter, de sobra, uns vinte e cinco centímetros! Na base, uma enorme bola maciça formada por inúmeros cubinhos encaixados dava o equilíbrio à peça. A coisa ia subindo e seu “caule” ia afinando pouco a pouco até chegar numa ponta mais... molinha... que se curvava delicadamente sem, porém, se desgrudar do corpo da obra, quase como uma folha de bananeira. O mais impressionante, miraculoso até, é que, justamente ali, nessa “folha”, a gravidade havia esculpido dois círculos e uma linha curva com arco para baixo, dando um aspecto de rosto àquela criatura, um rosto que estava sorrindo.
Grilo, que não queria ser alvo de gozação, começou a dar descargas, desesperado. Mas, que nem um “João Bobo”, aquele boneco de ar que sempre volta à perpendicular depois de um soco, aquele ser das cavernas teimosamente não ia embora.
- Grilo, o que é que tá havendo ai? Abre essa porta já!
- Droga, foi a única coisa que conseguiu dizer...
Ao abrir a porta, dona Helga, dona Martha e dona Gerda, acompanhadas de Rute, filha de Martha, e Hane, filha de Helga, pararam, simplesmente pararam, como é obrigado a parar todo aquele que se acha diante do milagre. Praticamente um inteiro minuto de total silêncio e, então, quase que simultaneamente, todas aquelas mulheres desataram numa gargalhada impossível de ser contida, tentando falar, mas nada conseguindo além de uns balbucios incompreensíveis, pois o riso era de tal intensidade que nada podia ser dito, nada podia ser feito. Os demais chegaram, atraídos pelo riso frouxo da mulherada.
Tanto estardalhaço se fez, para desespero do garoto, que resolveram tirar uma foto. Mais: fizeram até um filminho das descargas tentando levar o alienígena. Lucinha, irmã mais nova de Rute, queridinha como meninas de dez anos às vezes são, disse que deviam dar um nome àquele “indivíduo”, talvez já nutrindo alguma afeição pelo mesmo. Ainda dolorido, sem conter a imaginação e já aceitando a pecha, Grilo, parodiando Mario de Andrade, gritou:
- “Mocunãomiama”.
Mas, ainda mais uma alegria aquele sujeito parido na véspera de Natal reservava para aquela família: quando, enfim, o caule dava sinais de se desprender da base, a gravidade fez aquele rosto, já se desmanchando, ficar com cara de triste, com o arco da curva virado para cima, como que dizendo adeus a esse mundo cruel.
E a alemoada não perdoou. Cristen, o filho mais velho de Gerda, expert em edição de vídeo, elaborou um gif com as fotos, e um vídeo que logo chegou a mais de dez milhões de visualizações nas variadas mídias sociais. Ou seja: o artista tinha feito sucesso!
Tamanha foi a movimentação digital que uma das fotos chegou a uma exposição de arte contemporânea em um afamado museu brasileiro. O curador, que por meses coletara imagens para uma exposição, intitulada de “O Despertar da Nova Arte”, com fotos dos novos símbolos da era da comunicação, baseado na ideia de arte sem autor, dos novos conceitos sobre o que é arte, havia batizado a obra com uma intrigante pergunta: “Quem é o artista e o que é a obra?”.
Não é difícil imaginar a polêmica causada em toda a sociedade, com calorosas discussões na imprensa televisiva e pronunciamentos nas diversas câmaras de deputados e vereadores, sendo acolhida por uns, mas condenada por outros, tal qual Sagração da Primavera, de Stravinski, em sua primeira exibição.
Mas, muito mais digno de nota é o relato do Tio Zé, o quase aposentado segurança noturno do museu. Era sabido, pelo pessoal do museu, que ele nem sempre ficava tão sóbrio assim, naquelas noitadas, acompanhado de tanta coisa que não lhe fazia sentido. E os funcionários, uns pensativos com a capacidade filosófica de Zé e outros por pura galhofa, levaram o relato ao curador da exposição e aqui segue sua transcrição aproximada:
– Você não vai comer, não, Grilo?, perguntou Rutinha ao magrelo que, no auge dos dezessete anos, somava mais de dois metros e já tinha que se abaixar para passar nas portas da casa de dona Helga, a alemã matrona, viúva e sanguínea que comandava aquele casarão em estilo germânico.
– Não, já tô três dias sem cagar, resmungou o desbocado primo de Rute. Sua mãe já tinha até pego uma colher de pau para dar-lhe na testa, mas foi impedido por dona Helga: – Ah, deixa, Gerda, deixa esse schlambuga, daí sobra mais pra gente, proferiu a gordona simpática e bochechuda. Mas o garoto não se fez de rogado e atacou a maionese e o frango como se também não comesse há três dias.
No meio da sobremesa, um delicioso e macio pudim de leite moça com sorvete de creme, ambos acompanhando um apfelstrudel que nunca ficava menos que fantástico nas mãos de Helga, o guri parou e ficou olhando para a parede, olhos fixos.
– O que é que foi, Edelbert (Grilo, obviamente, era o apelido que a família dava ao pernudo, que o aceitou sem maiores mi-mi-mis)?
– Pô, mãe, não me chama pelo meu nome! É que deu uma dor de barriga agora.
E se mandou para o banheiro. Os demais, irmãs de dona Helga, esposos e filhos e filhas, caíram na gargalhada e continuaram a comilança e a conversa, pois as três irmãs, uma no Rio Grande do Sul, uma em Santa Catarina e outra no Paraná, quase não se viam e o Natal, portanto, era reencontro esperado e usufruído ao máximo...
No acento, Grilo, que tinha abusado nos queijos e chocolates diversos fazia já umas duas semanas, além de não ter saído do videogame pelo menos desde novembro, forcejou tanto que sentiu os olhos circularem nas órbitas e uma pressão de corpo inteiro tão forte que quase o fez desmaiar. Devem ter se passado ao menos uns dois minutos em que o rapaz ficou fora do ar, simplesmente sentindo que algo o deixava por baixo, como uma enorme caçamba despejando sua pesada carga vagarosamente. Quando os olhos voltaram a enxergar, tudo já havia terminado. Um alívio e bem estar total se apossou de Grilo, mente sã num corpo agora também são.
Ao se levantar é que tomou o susto!
- Caraca, véio, que é isso?!, que monstro é esse?
Ele contemplava, com assombro, nada mais nada menos que uma bosta colossal que devia ter, de sobra, uns vinte e cinco centímetros! Na base, uma enorme bola maciça formada por inúmeros cubinhos encaixados dava o equilíbrio à peça. A coisa ia subindo e seu “caule” ia afinando pouco a pouco até chegar numa ponta mais... molinha... que se curvava delicadamente sem, porém, se desgrudar do corpo da obra, quase como uma folha de bananeira. O mais impressionante, miraculoso até, é que, justamente ali, nessa “folha”, a gravidade havia esculpido dois círculos e uma linha curva com arco para baixo, dando um aspecto de rosto àquela criatura, um rosto que estava sorrindo.
Grilo, que não queria ser alvo de gozação, começou a dar descargas, desesperado. Mas, que nem um “João Bobo”, aquele boneco de ar que sempre volta à perpendicular depois de um soco, aquele ser das cavernas teimosamente não ia embora.
- Grilo, o que é que tá havendo ai? Abre essa porta já!
- Droga, foi a única coisa que conseguiu dizer...
Ao abrir a porta, dona Helga, dona Martha e dona Gerda, acompanhadas de Rute, filha de Martha, e Hane, filha de Helga, pararam, simplesmente pararam, como é obrigado a parar todo aquele que se acha diante do milagre. Praticamente um inteiro minuto de total silêncio e, então, quase que simultaneamente, todas aquelas mulheres desataram numa gargalhada impossível de ser contida, tentando falar, mas nada conseguindo além de uns balbucios incompreensíveis, pois o riso era de tal intensidade que nada podia ser dito, nada podia ser feito. Os demais chegaram, atraídos pelo riso frouxo da mulherada.
Tanto estardalhaço se fez, para desespero do garoto, que resolveram tirar uma foto. Mais: fizeram até um filminho das descargas tentando levar o alienígena. Lucinha, irmã mais nova de Rute, queridinha como meninas de dez anos às vezes são, disse que deviam dar um nome àquele “indivíduo”, talvez já nutrindo alguma afeição pelo mesmo. Ainda dolorido, sem conter a imaginação e já aceitando a pecha, Grilo, parodiando Mario de Andrade, gritou:
- “Mocunãomiama”.
Mas, ainda mais uma alegria aquele sujeito parido na véspera de Natal reservava para aquela família: quando, enfim, o caule dava sinais de se desprender da base, a gravidade fez aquele rosto, já se desmanchando, ficar com cara de triste, com o arco da curva virado para cima, como que dizendo adeus a esse mundo cruel.
E a alemoada não perdoou. Cristen, o filho mais velho de Gerda, expert em edição de vídeo, elaborou um gif com as fotos, e um vídeo que logo chegou a mais de dez milhões de visualizações nas variadas mídias sociais. Ou seja: o artista tinha feito sucesso!
Tamanha foi a movimentação digital que uma das fotos chegou a uma exposição de arte contemporânea em um afamado museu brasileiro. O curador, que por meses coletara imagens para uma exposição, intitulada de “O Despertar da Nova Arte”, com fotos dos novos símbolos da era da comunicação, baseado na ideia de arte sem autor, dos novos conceitos sobre o que é arte, havia batizado a obra com uma intrigante pergunta: “Quem é o artista e o que é a obra?”.
Não é difícil imaginar a polêmica causada em toda a sociedade, com calorosas discussões na imprensa televisiva e pronunciamentos nas diversas câmaras de deputados e vereadores, sendo acolhida por uns, mas condenada por outros, tal qual Sagração da Primavera, de Stravinski, em sua primeira exibição.
Mas, muito mais digno de nota é o relato do Tio Zé, o quase aposentado segurança noturno do museu. Era sabido, pelo pessoal do museu, que ele nem sempre ficava tão sóbrio assim, naquelas noitadas, acompanhado de tanta coisa que não lhe fazia sentido. E os funcionários, uns pensativos com a capacidade filosófica de Zé e outros por pura galhofa, levaram o relato ao curador da exposição e aqui segue sua transcrição aproximada:
Naquela noite, naquela noite do primeiro dia, eu tava olhando aquela foto, sabe, a foto daquela... Bom, vamos ser sinceros, a foto da merda, né?! E então chegou uma aparição, e eu logo me benzi, pois achei que era coisa do Capiroto, entende?, do Sete Capas. Mas não, eu vi, eu reconheci que era aquele cientista, aquele do bigode, da língua de fora, do cabelo comprido, branco; aquele daquela teoria. E eu vi que ele ficou ali, bem ali, na frente da foto. Eu fiquei sentado na minha cadeira, com a mão no revólver, mas é que o cara não fez nada, só ficou ali, parado, com uma mão no bigode, pensando, pensando. De repente eu escutei ele falando assim, bem assim, porque eu gravei as palavras: - Que arrependimento! Se eu soubesse, não tinha publicado o artigo de 1915. É preciso buscar, com urgência, uma nova teoria da abis, pera, é palavra difícil, a-bi-so-lu-ti-vi-da-de. E foi isso. Logo o fantasma saiu voando... E eu fiquei na minha.
20.12.20