Regressão - Uma Vida Passada

Estamos em uma casa simples e antiga, quase um casebre. Móveis e utensílios simples, uma moringa de água.

Estou deitada em uma cama simples, um catre.

De onde estou deitada dá pra ver um fogão a lenha e uma mesa simples.

Ao meu lado sentado em um banquinho, está um homem que cuida de mim com desvelo e carinho.

Nossas roupas são simples como de camponeses.

Eu estou muito doente, tem uma toalha em minha testa e minha cabeça dói muito, todo o meu corpo se sente doente e fragilizado.

Nós dois estamos apreensivos e temos medo, estamos como que fugitivos.

Eu era casada com um homem rico e poderoso, tirano e egoísta, que me maltratava com palavras rudes e com grosserias.

E eu me apaixonei por um homem simples, pobre. Fugimos juntos. Eu, que sempre fui rebelde, decidi enfrentar tudo para viver este amor. Desafiamos a sociedade desta época.

Eu deixei tudo. Uma vida boa e farta, uma casa linda e luxuosa, lindos vestidos e jóias. Festas e saraus. E um marido poderoso e de muitas posses. A tudo isto eu renunciei para viver com este camponês que tinha muito pouco a me oferecer além do seu amor.

Meu marido, ferido em seu orgulho, passou então a nos perseguir para nos matar e lavar sua honra, manchada pela minha ousadia. Vivemos então fugindo dele por todos os longos anos que passamos juntos. Ele nunca desistiu de se vingar de nós pela nossa ousadia e transgressão. Por eu tê-lo traído e envergonhado.

Foram muitas aventuras, perigos e dificuldades que vivemos. Muitas vezes tivemos que passar longos dias viajando de um lado para o outro para escaparmos de meu marido. Mas sempre vivendo com muito amor, respeito e carinho.

Agora eu estou doente e colocando a vida deste homem que eu amo em risco. Estamos vulneráveis pois não posso fugir, se for preciso. Meu marido pode nos encontrar a qualquer momento.

Eu sei que vou morrer e queria morrer logo para libertar este homem, para que ele possa fugir e não ser encontrado. De certa forma tornei-me um fardo para ele. Sei que ele não vai me abandonar e ele corre risco. Isto me dói e aflige minha alma.

No entanto me sinto confortada por estar aqui ao lado deste homem, que simplesmente cuida de mim sem ter muito o que fazer, que sofre com minha doença.

Nunca me arrependi do que fiz. Vivi o que queria, vivi um grande amor que não encontrei ao lado de meu marido.

Estou tranquila, vivi intensamente. Amei intensamente e fui amada como poucas mulheres foram.

Transgredi as leis e a moral deste tempo. Sou considerada adúltera e proscrita.

Mas tudo valeu a pena, as fugas, as dificuldades, os medos. Temo pela segurança dele, mas sei que ele vai saber se esquivar e se esconder da fúria do meu marido e da hipocrisia das pessoas, como sempre fizemos.

Tanto amor que sentimos um pelo outro foi nossa perdição, mas foi também sublime e fomos felizes.

Parto em paz e com a consciência tranquila de ter lutado contra os poderosos pelos meus sonhos e por um amor verdadeiro.

Sinto estar doente, mas até esta doença é mais suave e leve ao lado deste homem, que também arriscou tudo por mim.

Estou morrendo, minha cabeça dói cada vez mais intensamente, meu corpo não tem mais forças para lutar, mas eu estou tranquila, não me queixo para não deixar meu companheiro mais aflito. Nos olhamos e não dizemos nada. Palavras são desnecessárias. Nos despedimos a cada instante em silêncio e ele vela por minha vida.

E vai velar sozinho a minha morte.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 20/12/2020
Reeditado em 24/07/2023
Código do texto: T7140142
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