Mensagens de textos e teorias.
Eram onze horas da noite. Meu amigo mandou mensagens que estavam me deixando preocupado. Amizades pela internet podem ser estranhas mesmo. Ele simplesmente me mandou texto atrás de texto, e parece desesperado. Será que Victor está delirando? Eu leio estas mensagens e eu fico com uma sensação ruim. Dezenas de mensagens, e eu estou aqui querendo ir dormir. Mas, ele parece aflito. Não estou conseguindo acompanhar o que ele fala. Até onde eu sei ele não usa drogas, mas não parece normal. Com os olhos ardendo, tentei ler a última mensagem que ele mandou, deitado na cama, só com o celular aceso. Esperava que ele terminasse logo.
--Você não notou ainda? A internet é uma extensão do seu eu. Sua percepção de realidade está parcialmente armazenada em dados que criam tal extensão. O eu que sempre vai existir. O eu registrado. O eu que é público e anonimo em simultâneo. Pense o seguinte: é como se a janela de Johari se expandisse e se fragmentasse em mais partes: antes, os quadrantes de tal dinâmica era o "eu" que conhecemos e era oculto aos demais, o eu que os demais conhecem e é oculto a nós mesmos, o eu que nem nós mesmos temos conhecimento a respeito e o espaço no quadrante do eu que é de comum conhecimento dos demais a nosso respeito e nós mesmos. Talvez o que nós desconhecemos de nós mesmos tenha crescido mais quando produzimos um excesso de informação que projetamos na internet da mesma maneira que a percepção do que os outros têm de nós tem se tornado uma lacuna maior se partirmos do princípio de que os outros têm maior acesso a dados a nosso respeito, através de nossas publicações de redes sociais. A divisão do eu que projeta para além de cada individuo uma parcela que existe externamente ao ser. Pouco a pouco nosso eu virtual tem se tornado menos o "eu" que temos acesso e controle está se transformando apenas nossa cabeça em uma foto de perfil e informações que deixamos num rastro perdido.
--Sua teoria é esquisita, mas sei que não adianta falar para parar agora, continue.
--O fenômeno da internet revela como os dados espalhados de informação que produzimos diz tanto a respeito de nós mesmos que nosso rastro virtual expressa claramente o zeitgeist da nossa época, onde memes revelam os sinais de nosso tempo. Arquétipos antigos, que deram origens a deuses e seres que encheram o credo popular no passado, hoje se adéquam a nossa existência para fora do ser. Memes são mais que simplesmente piadas pintadas na rede, são a expansão do eu natural se adaptando as expressões do nosso ser que está conectado.
--E daí?
--Eu entendo que exista a percepção de um eu aqui, mas eu entendo que exista a percepção de algo mais. Percebemos isto quando tratamos como íntimos pessoas que existem longe de nós e que nem sequer tivemos contato presencial, seja parcialmente ou completamente. Podemos simplesmente observar celulares e computadores apenas como um mediador dos seus dados para com o seu eu que existe online.
--Não pensa que está indo longe demais? Quero dizer, você é você, eu sei que eu não consigo imaginar estas coisas complicadas que eu estou lendo, mas, o que isto tudo tem a ver? Qual é o motivo de estar me contando isto tudo?
--Porque talvez eu tenha entendido um pouco mais do porque eu estou sentindo cada vez menos conectado a outras pessoas. É a internet. É o algoritmo. Ele controla aquilo que queremos, o que nós acreditamos como real, e o que é real para nós, no fim das contas, não passa do que percebemos do mundo ao nosso redor. Quando trocamos de opinião, não vemos um processo de passarmos de uma opinião a outra lenta e gradualmente. Apenas mudamos.
--OK, você está realmente pensando em coisas malucas. É para isto que me chamou para conversar?
--Te chamei para conversar porque é a única pessoa em que eu posso confiar. Acredite. Durante toda a nossa existência, fomos criados para acreditar em algo que passou num processo de seleção. Algo como uma seleção artificial. Desde frases como "Deus ajuda a quem cedo madruga" até ideias complexas e teorias que nós temos. Não acredito que seja mera coincidência que o nosso eu esteja sendo controlado por um algoritmo. Se parte de nós, parte de nossa psique se encontra na rede através de uma conexão, significa que meros algoritmos mudam completamente o que acreditamos ser real ou não. Opiniões politicas, fé em uma religião, filosofias de vida, motivações, tudo enquadrado em dados que são retransmitidos a uma complexa rede de computadores ligados. Estamos perdendo parte de nossas almas para algo que está sugando esta parte para um número de informações.
--Bom, se está dizendo esta maluquice, faz sentido estar parecendo que madrugou por dias e está horrível. Tem dormido bem?
Aparentemente, não estava disposto a responder minha pergunta. Meus olhos estavam cansados de olhar para o celular. Tentando encerrar a conversa de forma delicada, falei
--Está sendo cansativo ter estas ideias? Porque não para, simplesmente?
--Porquê? Não sei. Talvez é como se eu estivesse encontrando algo maior, algo que vá me fazer me sentir melhor comigo mesmo, ainda que eu agora esteja voltando sempre a estaca zero. Eu me imagino encontrando uma relação de causa e consequência em minhas decisões e conclusões que eu chego, mas acabo percebendo que tentando satisfazer o meu desejo de encontrar uma verdade, na verdade, encontrei onde a mentira reside dentro de mim. Ela se encontra em uma parte oculta. Como dados que foram compactados em um arquivo comprimido e enviado a outro servidor, fora de mim. Por isto sinto que eu perdi algo.
--Dê um tempo a você mesmo. Está precisando.
Ótimo, a conversa vai encerrar agora. Só preciso fazer ele se acalmar e ir dormir.
--Eu sei que é sofrido, mas, esquece tudo isto. Vai dormir, tente pensar em outras coisas. Sei que vai diminuir esta sensação ruim que você tem me contado.
--Será? Conhecer é sofrer. Eu quero conhecer mais do mundo. Eu escuto todas as vozes na internet e tento aprender algo. Desde analisar o que as coisas significam a elaborar teorias malucas. Mas quanto mais tento quebrar o código, mais resistência encontro em rasgar o véu da ilusão. Por exemplo, eu sei que enquanto pessoas pensam de forma leviana que meros memes sejam apenas piadas estranhas estes são representações de arquétipos que sempre existiram na nossa história, sempre fizeram parte da nossa natureza. Eu penso em que forma prática posso usar este conhecimento para ampliar a visão em um mundo onde a informação está cada vez mais limitando o alcance de nossos olhos. Presos a limitações de um código que nos oferece de mão beijada informações que antes lutaríamos para encontrar. Ler um livro, pesquisar em uma biblioteca, coisas assim são relevantes hoje em dia?
--Não sei se está percebendo, mas não está falando coisa com coisa. Onde quer chegar?
--Quero chegar no ponto que estamos sendo manipulados. Encontramos ainda em certas formas uma válvula para nossa frustração. Piadas, memes, prazeres da vida moderna. Meros passatempos para nos desligarmos da dor que sentimos por perdermos parte de nós. Mas, para qual propósito?
--Não vai me dizer que vai falar sobre teorias da conspiração e coisas assim?
--Não. Não acredito que tenho contato propriamente dito com o propósito real do que está nos influenciando. Acreditar em teorias da conspiração é como tomar uma mera pílula de alucinógeno que tomamos para fingir que nossa vida tem sentido. Acabamos vulneráveis a histórias que nem filmes de Hollywood seriam dignas de produção.
--O que quer dizer com isto tudo, exatamente?
--Sei que parece idiota. Mas talvez a resposta mais simples seja eu simplesmente me desligar de tudo. Se todos estão falando, todos estão lutando para ter as próprias vozes ouvidas. Talvez a maior rebelião contra tudo seja se calar. Quando todos tentam falar ao mesmo tempo, se calar se torna a maior forma de rebelião. Às vezes penso que a fórmula correta é a mesma forma de agir que eu desprezo: simplesmente silenciar minha mente, minha criatividade, minha curiosidade, minhas dúvidas e viver como se a falta de sentido fosse o sentido da minha vida: se nada importa o que impede de simplesmente consumir sem pensar? Quero dizer, a longo prazo, aquele que é regrado e busca a autodisciplina encontra o que de diferente daquele que simplesmente quer aproveitar uma boa vida desregrada e cheia de vícios? Ambos estão em caminhos diferentes, mas buscando o mesmo propósito de satisfação de seu eu. Ambos alcançam de maneiras diferentes o prazer. O que muda é apenas a metodologia e o tipo de saciamento. Mas penso: o quanto isto é somente fadiga e desejo de fugir? Preciso ir além.
Já estava ficando aborrecido.
--Vai dormir. Você acha que é quem? Um gênio? Por acaso quer ser o Super-homem ou algo assim?
--Quase.
--O quê?
--Não o herói dos quadrinhos. Mas seria interessante passar para além do que é humano. Mas, sim, eu sei que é só minha vaidade. Ainda que seja por vaidade, quero, entretanto, descobrir isto: qual o real sentido de minha vida estar sendo dividida entre minha existência física e a virtual? Fotos, vídeos, informações. Não é possível simplesmente se desconectar. Seu trabalho necessita de um celular com conexão a internet para receber recados. Sua vida social depende de manter contato com pessoas pela internet. Sua conta bancaria está ligada a aplicativos. O próprio entretenimento está ligado a aplicativos. Entretenimento este, aliás, que parece mais viciante que drogas ilícitas. Séries, filmes, todo tipo de entretenimento na rede. Spoiler se torna cada dia que passa mais um insulto pessoal a pessoa que um tapa na face.
Não aguentei mais. Eu precisava ir dormir. Não queria o interromper, mas já não aguentava aquela história toda.
--Esta conversa está me dando sono. Eu sei que precisa por pra fora o que está sentindo, mas vá direto ao ponto.
--Bom, meu ponto é... bom, deixa para lá.
--Não, pode falar.
--Está tarde, esquece.
--O que pretende fazer?
--Não sei, exatamente. Eu não consigo parar de pensar nas coisas que eu penso. Acredito que vou precisar me esforçar mais.
--Vai dormir. São quase meia-noite e está mandando mensagens sem sentido.
--Certo, vou dormir. Só tenho que pensar em umas coisas e vou dormir.
--Não dá para isto esperar? Você não me parece bem.
--Ei, saiba que você é um amigo de muita estima.
--Você também. Qualquer coisa me chama, certo? Boa noite.
--Boa noite.
Como se caísse em si e percebesse que exagerou nos textos, ele se aquietou e não escreveu mais nada. De manhã perguntei se ele estava bem. Não tive resposta nenhuma. Agora faz um ano que eu não tenho contato com ele.
Perder uma amizade de alguém pela internet dói tanto quanto uma pessoalmente. Só fiquei sabendo meses depois que ele desapareceu. Deixou uma última mensagem escrita numa folha de caderno. "Eles descobriram, não vão me deixar contar o que eu sei". Não sei quem ele chamou de "eles", sei apenas que eu não consigo parar de pensar que ele sumiu de repente. Desconectou.