A dor do inseto

"Trecho do último com que escrevi"

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Em uma das madrugadas, como era de costume quando todos estavam dormindo, decidi por pegar um ar fresco; carregava comigo um romance, Dom Casmurro, velha a edição creio eu. E eu mergulhei completamente; logo estava imerso no casarão da rua de Matacavalos na pele de Bento. Nem mesmo a sinfonia dos grilos desprendia minha atenção naquele texto; me embriaguei. Entretanto, um estremecer dentro de casa me agitou; meus ouvidos logo aguçaram; arregalei os olhos, e decidi voltar para meu quarto com o livro e um banquinho debaixo do braço. Passei a sala de estar na ponta dos pés, atravessei a cozinha me guiando pelos resquícios de luz lunar que penetravam a casa e continuei em direção ao meu quarto; os barulhos haviam cessado. Me enfiei logo em direção à maçaneta da porta, tomando-a com a mão cheia. Não demorou para que um vulto encorpado emergisse em uma das portas obscurecidas; saltei para trás quase deixando escapar um belo grito. Era Irvina, a mulher de Meneses.

— Ainda acordado? — perguntou ela.

— Me desculpe! Me desculpe! — respondi cochichando ainda assustado.

— Não! Foi só uma pergunta; eu acordei agora, meu quarto está tomado pelos mosquitos.

Irvina adentrou o quarto antes mesmo que eu o fizesse, ligou uma das lâmpadas e sentou na cadeira que havia em frente à uma escrivaninha de madeira repleta de papeis e materiais diversos. Tinha no corpo um longo vestido de dormir amarronzado que ultrapassava os secretos joelhos. Esticou o pescoço por cima da cabeceira, tentando alcançar com os olhos o pequeno espelho do outro lado do quarto, passando o cabelo por entre os dedos. Entrei logo depois, ainda olhando para trás com total desconfiança, depositando meu livro sobre a mesa. Perguntei se a havia desrespeitado; completei dizendo que amanhã provavelmente choveria, tentando de alguma maneira justificar minha insônia e minha fama de vagal.

— Fique tranquilo! Acabei acordando de um sonho estranho. Só isso.

Olhei-a com seriedade e não encontrei com seus olhos. Estava sentada ao contrário na cadeira de pau, abraçada no encosto com as pequenas mãos entrelaçadas em fronte, olhando através do fino e transparente tecido das cortinas laranjas. Preocupado, pedi desculpas novamente; imaginei ouvir o ranger dos dentes e o ronco do marido ao dormir; tão submisso ao sono que nem sequer havia notado a ausência de sua amada. Pedi para que voltasse à cama; esbocei sinais propositais de sono.

— Então está lendo Dom Casmurro? Li apenas até a metade. — disse Irvina.

— É mesmo? Por quê?

— Eu sei lá. Não tenho paciência.

— Mas gosta de Machado de Assis?

— Gosto.

— O que já leu?

Me seguiu dizendo uma lista de obras do autor, principalmente contos, aqueles mais breves que um instante. Logo em seguida eu falei mais um bocado; nesse ponto Irvina passou a engolir-me com os olhos, concordando com a cabeça e sorrindo sem mostrar os dentes. Passou os dedos de cima abaixo nas costas da cadeira e entrelaçou as mãos novamente. Sempre que, depois de divagar, meus olhos a reencontravam, via seus olhos saltarem de alguma outra parte do meu corpo, como quem vigia cuidadosamente. Incomodado, pensei alto:

— Seu marido deve estar procurando você, eu...

— Não. Ele dorme mesmo como uma pedra. Eu fico pensando, com aqueles remédios que toma, nem mesmo num incêndio, com a pele tostada, ele seria capaz de despertar.

— Entendo.

— É, estou tomando sua noite. Me tornei uma pessoa insensível, um rapaz da sua idade precisa dormir umas tantas horas a mais do que uma senhora como eu.

— Não toma! Fique, se assim for tua vontade. Eu também não dormirei tão rápido; não tenho sono algum!

Irvina levantou, caminhou até a porta do quarto, vasculhou com os olhos aquela sala escura onde se abria o pé da escada, e logo se colocou novamente para dentro. Foi até a janela, num caminhar doce e ritmado, abriu as cortinas e prendeu os olhos na rua por um instante. Vi suas costas decotadas pelo final das alças do vestido; tinha umas três ou quatro pintas escuras, organizadas quase que de maneira simétrica. Rompeu uma fresta da janela, permitindo a entrada de um fio veloz de vento, que logo arremessou aos ares uma porção dos fios de seus cabelos, expondo suas orelhas dotadas de grandes e loiros lóbulos. Voltou até a cadeira, colocou-a mais próxima da janela, e sentou novamente; depois, colocou as mãos na testa enquanto olhava para o chão; mirou em mim os olhos e sorriu novamente sem motivo aparente. Eu repeti, por mais que constrangido, que gostaria de evitar a fúria de seu marido dorminhoco; o homem poderia acordar a qualquer momento; imagina só a cena: eu e Irvina, às 3:30 da manhã, num dos quartos da casa, trocando segredos. Eu não queria aborrecê-lo.

— Quem dera ele acordasse! Ele que me trata como um fantasma dentro de casa; olha com olhos mortos há muito tempo; olhos que atravessam a gente. É uma coisa horrorosa.

— Não acredito!

Levantou-se e dessa vez se acomodou perto de minhas pernas, no mesmo colchão que eu sentara. Tocou com os dedos um dos meus sinais de nascença próximo da lateral dos olhos; fiquei pálido. Aproximou os olhos daquele sinal de tal maneira que senti o bafo de sua respiração na fonte. Desejei virar o rosto, mas algo cimentava meu pescoço, imobilizava-o completamente. Deixei minhas mãos sobre as pernas; limpei-as logo após na colcha; estavam soadas. Olhei mais uma ou duas vezes para a porta. Ela, abriu a boca para dizer algo; depois, antes mesmo de que a palavra nascesse, fechou-a. Levantou-se, andou de um lado para o outro no quarto enquanto passava o indicador por toda e qualquer superfície. A vi cambalear pelo local, num balanço desconcertante. Tocou-se contra a cadeira com força, rangendo o assoalho. Fiquei apavorado; já estava tremendo as pernas de um misto de medo e sei lá o que. Por pouco esqueci da mulher que havia conhecido noites antes naquela mesa de jantar.

Finalmente, largou a mão sobre as pernas, estalando o couro naquele imenso silêncio; quando voltara, repousando as mãos nos cabelos, levou consigo parte de seu vestido que, ao mover-se menos de três centímetros, foi capaz de expor cada um dos seus rosados joelhos. Proibi meus olhos; instintivamente os pressionei sobre o crucifixo pendurado na parede atrás de sua cabeça. Lá permaneci em silêncio; ela também. O resto da noite me foi embaçado pela ebriedade da sonolência; lembro dos seus últimos movimentos em minha direção; em como acomodara as mãos nos meus ombros levemente. Me pus a dormir e quando acordei, ainda pela manhã, notei o odor estrangeiro que havia colonizado meu pequeno quarto. Era como um doce de maçã. Custei uns segundos para perceber que o que havia acontecido não era um sonho.