RECORDAÇÕES

Ela abriu cuidadosamente o antigo álbum de fotografias, folheou-o demorando mais em algumas páginas do que em outras. Já estava velha. A beira da morte, e ela sabia disso, sempre soubera disso.

Aos 11 anos quando sofreu da escarlatina negra, um estrangeiro visitou sua casa e ao pé de sua cama disse que se sobrevivesse teria que passar por mais duas provações e caso passasse ilesa de todas elas, seria a última da família a morrer.

Aos 22 sofreu de uma profunda depressão, mas conseguiu passar por mais essa dificuldade. E perto de completar 50 anos teve uma grave crise de apendicite que quase a levou a morte pela terceira vez.

Olhou atentamente a foto do irmão que acabara de falecer, ainda estava com o vestido que foi ao seu enterro. O último irmão que ainda estava vivo. Seus pais tinham morrido a muito tempo, antes mesmo da apendicite.

O primeiro dos irmãos a morrer não lembrava direito, era muito nova, mas foi uma menina, nasceu logo depois dela. Clara era para ser a terceira filha. Mas ainda com 3 anos comeu mandioca crua e morreu envenenada.

Seu irmão mais novo foi o segundo, vítima de malária lá para as bandas no norte, não foi ao seu enterro, soube a notícia muitos anos mais tarde, por intermédio de um antigo conhecido que tinha regressado de lá.

“Acre, foi lá que ele morreu.” pensou, sua mão estava em cima de um dos poucos retratos que tinha deixado. Lembrava-se de quando eram crianças, Antônio era o mais esperto de todos, dizia. Inteligente, sempre gostou de estudar, não gostava da roça, como os outros, mas a vida o matou onde ele menos gostava de estar: na mata.

Antônio.

“Jona, porque os morcegos dormem de cabeça para baixo?”

Foi durante a grande seca de 1921. Joana estava sentada em uma cadeira de couro na varanda ajeitando alguns calções de seus irmãos, enquanto sua mãe terminava de improvisar algo para comer. Eram tempos difíceis, muitos já tinham abandonado suas casas e seguiram as estradas rumo a capital, “terra farta”, pensavam a maioria dos agricultores da região onde moravam.

Mas sua família apesar das dificuldades decidiu permanecer, fazia dois anos que não chovia direito, fazia dois anos que estava naquela luta. Mais da metade do gado já tinha sucumbido à seca e a plantação estava morta, não nascia um pé de milho. De verde só se via as folhas do juazeiro, e os xiquexiques.

A irmã estava com a mãe na cozinha, os outros irmãos tinham saído com o pai, ver o gado. Já era quase meio-dia e ninguém voltava. A sua frente estava aquele menino ávido por saber esperando a resposta, tantos pensamentos passavam por sua cabeça, nem se lembrava mais da pergunta.

“Jona, porque os morcegos dormem de cabeça para baixo?”― perguntou novamente o menino magro e roupas rasgadas de cabelos negros cacheados, muito baixo para sua idade.

“não sei meu amor” ― respondeu.

“e porque quando o pintinho nasce não sai também aquele líquido branco e amarelo?”

“esse líquido branco e amarelo é o pintinho” respondeu

“mas como é que ele se transforma é um pintinho?”

“eu não sei.”

“Doce Antônio” pensou, sua mão pousava sobre seu retrato, anos mais tarde ele decidiria fugir, seguir para as bandas do norte foi ser professor dos filhos de extratores de borracha das árvores. “Não, não foi no Acre que ele morreu foi na Amazônia” sussurrou. Agora lembrava bem.

“Joana, venha cá. Termine de ajeitar esse menino e venha me ajudar com Paula.”

A mãe sempre precisava de sua ajuda para tudo, lembrava que chorou muito quando viu seu caixão abaixar – foi em 1953, um ano antes de sua crise de apendicite. Era a filha mais velha. Aprendeu desde cedo a fazer tudo, mas também aprendeu a obedecer. Sua mãe não era de bater muito, mas suas palmadas doíam muito.

A frase dita algumas horas do casamento de Tenena, seu tio, ficou em sua cabeça por muito tempo, talvez por que aquele dia foi inesquecível. Tenena morreu de coração no altar, antes de dizer Sim para o padre.

Antônio tinha sido arrumado por ela, vestia sua melhor roupa, sapatos lustrados e boas meias (trazidas da capital por um amigo de seu pai). Foi 8 anos depois da seca de 21, Joaquim já morava na capital, foi o único dos irmãos que não compareceu ao casamento do tio, soube da notícia de sua morte por uma carta que o pai o enviou. Antônio já era rapaz, mas ainda assim gostava de ajudá-lo a se arrumar. Diziam que eles eram mais do que irmãos, que um sentia o que o outro pensava. Paula já era moça tinha quase 20 anos na época. Lembrou-se que sua mãe a chamou para ajudá-la a por o sapato em Paula. Sapatos sempre foram o problema de Paula, seu pé era muito largo e sempre dava trabalho em entrar nos sapatos finos.

Paula

A quinta a morrer. E a única de seus irmãos que a viu depois de morta.

De todos os irmãos podia-se dizer que Paula foi a mais dedicada à família, nunca trabalhou. Sua vida, suas felicidades e tristezas se confundiam com as felicidades e tristezas de sua família. Foi uma mãe exemplar e deu todo o carinho e afeição que seus filhos mereciam.

No dia de seu enterro, Francisco disse que de todos os irmãos e parentes que enterrou, Paula foi a que teve a morte mais injusta. Mesmo velha nunca deixou transparecer fragilidade e sempre cultivou e ensinou a bondade, era costume todo mês separar algo seu para as pessoas carentes que conhecia. Francisco chorou muito no dia da morte de Paula, a grande união deles era notável, na sua lua-de-mel ele chamou Paula e seu marido para irem juntos, ninguém acreditou quando os dois casais retornaram juntos de Natal.

O casamento de Paula foi de longe o mais bonito de todos, ela teve sorte casou-se com o filho de um grande proprietário de terra da região. O vestido de casamento tinha sido feito especialmente para ela. Branco, com detalhes de renda, um véu enorme que chegava aos pés e as luvas que iam até o cotovelo. Seu casamento durou muitos anos e deu três frutos: Querência (a quem teve o prazer de ser madrinha), Ricardo e Felipe.

Nenhum dos três filhos de Paula conheceu Antônio, ele já tinha partido para a Amazônia quando eles nasceram.

Querência.

Viajou para os lados de São Paulo e lá ganhou a vida, tornou-se importante, dona de uma empresa. Todo final de ano ela entregava para ela um cartão de Feliz natal e Feliz ano novo para a madrinha.

Folheou um pouco mais o álbum de fotografias e enfim encontrou, uma menina de olhos amendoados e pele morena, lindos e ondulados cabelos castanhos, sorrindo e a abraçando. Lembrou-se que aquela foto foi tirada no aniversário de 12 anos de sua afilhada, foi ela mesmo que tirou a foto com a máquina fotográfica que ganhou de presente de seu irmão Francisco.

Mas Paula, onde estaria Paula? Voltou mais um pouco às páginas mas não encontrou a página que procurava. “Talvez tenha se perdido com o tempo” pensou. Não tinha mais a foto da irmã, mas não precisava de foto para lembrar-se dela.

Paula realmente estava linda no seu casamento, foi a época mais feliz de sua vida. Anos mais tarde caiu da escada e bateu a cabeça, passou dias no hospital, em recuperação, mas ela não resistiu e veio a falecer em novembro de 1990, com quase 76 anos. Felipe, o caçula de Paula, não conseguiu suportar a morte da mãe, não gostava de enterros, lembrava. Nunca foi a nenhum dos enterros da família nem o do pai, no da mãe foi apenas para o velório e mesmo assim passou pouco tempo.

“Olha Joana como estou linda.” Falou Paula minutos antes de entrar na igreja no dia de seu casamento, girou e abriu os braços para mostrar como estava feliz.

“Leandro está te esperando Paula.”

“Eu sei, mas olha!” Girou novamente, os cacheados cabelos dourados balançavam por detrás do véu “Ah! Joana, estou tão feliz! Leandro é um amor de pessoa. Paciente, atencioso, carinhoso, amigo.... é um homem maravilhoso.” Deu um sorriso “pode chamar papai para podermos entrar.” Ela tinha um brilho deferente nos olhos naquele dia, brilhos de felicidade.

Leandro

O filho do grande proprietário da região que se tornou um dos maiores engenheiros do país nos anos 50. Foi convidado pessoalmente por Juscelino Kubitschek a ajudar na criação de Brasília. Algumas das obras idealizadas por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer foram supervisionas por ele. Nesse período toda a família se mudou para o planalto central. Paula teve mais do que nunca que se mostrar forte.

“A empolgação de Leandro com a construção da nova capital...” dizia ela, “era notável, muitas vezes passava mais de 10 horas na obra chegava em casa cansado não tinha tempo para mim e para os nossos filhos”

Por mais difíceis que eram os períodos do casal e as tantas histórias de desentendimento que soube posteriormente, o amor que eles tinham um pelo outro superava qualquer problema e tudo voltava a tranqüilidade na casa da irmã. O casamento de Paula foi bem mais feliz do que o de Joana.

“Ah! A música do casamento de Paula” suspirou com o álbum de retratos em seu colo, nunca a esqueceu aquela música, toda vida que se lembrava da irmã vinha aquela música em sua cabeça e de como ela estava feliz e sempre esteve feliz durante toda a sua vida apesar de todas as dificuldades.

No tempo do casamento da irmã ela ainda estava noiva de Sérgio, um comerciante da região com quem viria a se casar um ano mais tarde, superstição ou não, foi ela quem pegou o buquê da irmã.

Sérgio.

Um marido problemático podia se dizer dele. Sua foto está em sua cabeceira. Alcoólatra, muitas vezes chegava em casa e a espancava. Pensou em abandoná-lo, mas a vergonha de uma mulher separada para os costumes da época era pior do que os murros que levava uma vez por semana.

Mas foi com ele que teve a maior de suas alegrias. Um filho.

Vicente.

Nasceu em Maio de 1983, dois anos depois de seu casamento, estavam no fervor do estado novo. Na época se ouvia pelo radio a tentativa, sem sucesso, dos integralistas assaltar o palácio Guanabara no Rio de Janeiro.

Vicente que mais tarde se tornou militar e sempre gostou de política. Em 1964 estava em Brasília junto com os militares que fizeram o golpe de 64. Nesse período mandou poucas cartas, tudo era vigiado, as cartas confiscadas, muitos eram presos, torturados e exilados, foram tempos difíceis.

Foi no final da ditadura militar que morreu o quarto irmão.

João.

Que sempre gostou de animais, desde menino. Sofreu mais do que os outros durante os períodos de seca, não agüentava ver os animais morrendo. Nem gostava de ir com o pai para pastorar, a Seca de 32 foi uma provação difícil para ele. Adoeceu junto com a seca, e quase morreu. O padre já tinha rezado a estrema unção, mas milagrosamente ele decidiu viver.

Por causa desse milagre decidiu seguir os caminhos de Deus, tornou-se noviço, mas desistiu, sua paixão sempre foram os animais. Estudou muito e tornou-se veterinário.

João o único que não esteve em seu casamento, na época ainda estava no seminário.

“Ser seminarista não era mesmo a minha vocação” ― Falou João no dia da sua chegada depois de 6 anos no seminário. ― “Adoro, e acredito muito em Deus, mas decidi mudar. Vou fazer veterinária. O que acha Joana?”

“Sempre disse que você tinha trato com animais. Joaquim já sabe que você saiu do seminário?”

“Não, ainda não contei para ele, na verdade acabai de vir de lá” ― Ele estava com uma mala preta aos seus pés, uma blusa branca e uma calça preta.

“Por falar em Joaquim soube que abandonou a livraria, agora está trabalhando em uma barraca na praia”

“Ora então temos comida de graça? Que coisa boa” ― E deu uma gargalhada

“Não é bem assim, ele acabou de se instalar lá.... e de qualquer forma não teríamos comida de graça.”

“Eu sei Joana, você é muito certinha. Eu saí do Seminário quero vida nova, quero curtir um pouco a vida antes de me preparar para a veterinária. Que tal comemorarmos essa nova fase da minha vida todos juntos? Chame a mãe e o pai, Paula, todo mundo. Vamos comemorar lá na Barraca do Joaquim”

Aquela tarde foi maravilhosa, algumas fotos foram tiradas lá, mas nenhuma estava naquele álbum. Estaria em um outro ou com os outros irmãos.

A foto de João era a primeira foto do álbum. Tinha guardado tantas fotos dele, mas gostava muito de uma em que ele estava na serra, em frente a uma igreja, seus braços para trás e um largo sorriso no rosto.

O tempo foi bom para com João, envelhecia, mas não parecia, com 40 anos, não aparentava com um pouco mais que 30.

Sua morte foi a mais dolorosa. Dois meses internado em uma UTI, morrendo dia após dia, o choro e o desespero de sua esposa, sempre muito emotiva, é mais uma má recordação de seu passado. Estava morrendo junto com a ditadura que tanto combateu e por ela foi exilado.

“Joana, cuide de minha esposa está certo?”

Estava escura naquela noite de Abril de 1967, João a encontrara logo depois que ela tinha voltado da padaria, Sérgio estava acamado, com um pouco de febre. O irmão a agarrara pelo braço, tapou sua boca para não gritar o a levou para um beco.

“Pra onde você vai?”

“Me esconder. Esses militares estão me procurando, meu jornal está acabado.”

“Vicente, pode te ajudar. Eu escrevo uma carta para ele e eles não te prendem.”

“Teu filho está do lado dos militares, e você devia se envergonhar disso, se juntou aquele bando de urubus, se tornou um deles. Eu soube, ele esteve em Brasília não foi? Mas se você ainda gosta de mim me prometa que vai cuidar de minha esposa e de meus filhos tudo bem?”

“Antônia e os meninos ficarão bem, não se preocupe. Mas e a clínica?”

“Sobre esse assunto já falai com Francisco, só não deixe nada acontecer com Antônia e meus filhos, eu confio em você.” Segundos depois ele falou “Ah! A chave para a Dona Marocas estará em sua caixa de correios”

“Francisco está no Brasil?” ― Falou. Mas ele já tinha sumido na escuridão e voltado a clandestinidade.

Sua fuga não teve sucesso três dias depois foi noticiado no rádio que o editor do Jornal Folha Estadual tinha sido preso e estava indo para o exílio na Inglaterra.

Era mesmo. O jornal. A outra paixão de João, as letras. Depois de entra na faculdade de veterinária foi convidado por um amigo a fazer colunas sobre tratamento de animais domésticos em seu jornal, aos poucos foi tornando-se cada vez mais poderoso dentro do jornal, se interessando também por outros assuntos fora a veterinária. Até se tornar dono do Folha Estadual comprando as últimas ações em 1952. Mas nunca deixou de exercer a medicina veterinária, tinha seu consultório no Centro a poucas quadras do jornal. Ninguém sabia como é que ele conseguia conciliar as duas coisas, Joana dizia que ele queria abraçar o mundo com as pernas, e não era verdade? Seus outros irmãos o chamavam de louco por gostar da medicina e das letras ao mesmo tempo, são raras as pessoas que conseguem, mas talvez ainda seja resquício do tempo de seminarista.

Foi na época do declínio de Vargas, 1954 marcava o fim de era. Entretanto o marco foi o crime da rua Toneleros – o atentado a Carlos Lacerda – sendo já dono do jornal ele pessoalmente cobriu todas as notícias. Foi o único dos irmãos, dos que estava vivos na época, que não estava do seu lado quando adoeceu de apendicite. Estava cobrindo os acontecimentos de Agosto de 1954, a clínica de veterinária ficou sob o comando do Dr. Ranieri, um de seus colegas da Faculdade. Muitos anos depois ele confidenciou que nessa época ele até pensou em abandonar a medicina veterinária para seguir a carreira jornalística, mas sua paixão por animais era muito grande e ele permaneceu nas duas profissões.

Mesmo no exílio ele não deixou de exercer a veterinária, montou um consultório em Londres e aproveitou o tempo fora do país para estudar mais sobre cirurgias em animais e outros assuntos dessa área.

Anos mais tarde regressou ao Brasil, com vários problemas no Pulmão. De longe ficava sabendo das atrocidades que os militares faziam no Brasil, dos Atos institucionais, entre outras coisas.

Depois de sua morte, Antônia, sua esposa, foi definhando, enfraquecendo, não sentia mais vontade de comer e morreu no mesmo dia em que Tancredo Neves foi eleito presidente.

Da janela, perto de onde estava sentada vendo aquele álbum de fotografias, sentiu uma leve brisa, o suficiente para folhear o álbum e voltar para a página em que um rapaz de cabelos cacheados, e pele clara sorria em frente a uma casa de muro branco.

A casa de muro branco foi sua moradia por tanto tempo. Aquela foto de Antônio tinha sido tirada no último dia que ele morou lá, antes de ir para a Capital morar com o irmão Joaquim.

Joaquim.

Na época Joaquim tinha 25 anos e Antônio 17. A capital o sonho de todos os irmãos e o primeiro que conseguiu ir foi Joaquim.

O irmão mais velho, que quando criança gostava da vida do campo, mas aos 20 anos teve que abandonar a tranqüilidade da vida rural para viver na agitada cidade dos anos 20. Época de revoluções artísticas e industriais. Inicialmente arranjou um emprego como ajudante de pedreiro na construção civil, era a época em que as cidades cresciam, mas também era uma época de conflitos da política.

Em 1923 estourou a revolução gaúcha e o desgaste do regime oligárquico no governo de Artur Bernardes tornou-se evidente. O Brasil estava em intensa agitação política e militar. Escutavam-se no rádio no dia em que chegou na capital da marcha dos tenentes em Copacabana.

Seus pais o tinham mandado para a capital com um propósito: arranjar um lugar para levar a família. Depois da seca de 21 a agricultura tinha melhorado um pouco, mas mesmo presos a terra queriam oferecer melhores condições para seus filhos e Joaquim foi o primeiro a ir, mas a vida na capital era difícil, foi só depois de um ano e meio que conseguiu um bom lugar para morar e para trazer os irmãos, pois antes morava em uma pequena vila de retirantes.

Esses três anos entretanto, não foram só dedicados ao trabalho de pedreiro, conheceu pessoas boas que o ajudaram muito e ao final desse tempo conhecia pessoas bem influentes na capital. Mudou de emprego várias vezes: de pedreiro a pintor, foi também ajudante de Jornal, e quando Antônio foi morar com ele trabalhava como vendedor de livros. A chegada de Antônio 2 anos depois de se mudar para a casa nova trouxe novo ânimo para sua vida solitária, e seu irmão acabou se tornando seu maior amigo e confidente.

Joaquim o terceiro a morrer. Joana olhava para o porta-retratos em cima da cômoda onde tinha uma foto dos dois irmãos na casa simples em que passaram a morar juntos e que anos mais tarde seria o local das férias dos outros irmãos que iam para a capital.

“Namorador”, era assim que a mãe de Joana o classificava, mas nunca conseguiu se casar. E Antônio seguiu o mesmo caminho do irmão, muitas mulheres mas nenhum compromisso. Pelo menos até ele ir para a Amazônia.

Da Amazônia Antônio mandou poucas cartas, a maioria destinada a Joaquim, uma ou duas para sua mãe e outra para Joana a quem ainda tinha muito estima.

Joana se levantou vagarosamente, se amparou na muleta e foi em direção a cômoda. Abiu a segunda uma das três gavetas e de lá retirou uma carta de papel muito fino, amassada e amarelada.

“Abril de 1940

Minha cara irmã, antes de tudo quero te desejar um feliz aniversário. Nunca esquecerei de seu aniversário. Você é muito especial para mim. Neste momento estou em Manaus, mas passei as últimas semanas na mata, no seringal, ensinando, muitas vezes a noite e a luz de velas. Como está o clima aí? Aqui está chovendo bastante, como estão os pais? E Joaquim? avisa a ele que estou mandando saudades...”

A letra curvada e quase ilegível estava tal e qual se lembrava, fazia tempo que não relia aquela carta, se lembrava que chegou poucos dias depois de ter completado 35 anos.

“... e os outros irmãos como estão” continuava a ler a carta “faz tempo que não nos vemos, não é verdade. Há 4 anos, parti logo depois de seu casamento, mas foi melhor assim, não podia mais ficar na capital, nos últimos anos não tinha mais emprego por mais que eu procurasse e o país, estava um caos e ainda está não é verdad?. Aqui as notícias chegam sempre atrasadas, mas vamos deixar essas preocupações para lá. Com está Sérgio?E Vicente? O aniversário dele é por esses tempos não é? Mando-te os parabéns. Ele deve ser lindo, se puxou a mãe. Infelizmente ainda não o conheço, mas espero vê-lo em breve, não só ele, mas a filha de Paula também e todos você.

Aqui é ótimo, todos no seringal são bons, com exceção do coronel, ele acredita que não é bom ensinar os seringueiros, dá-lhes conhecimento, mas acredito que todos devem saber ler e escrever e saber fazer contas. Com a segunda guerra, e as áreas produtoras de borracha no Oriente bloqueadas, a exploração da borracha da Amazônia ganhou de novo mais vida, tem gente que vem de todo canto do país, inclusive daí do estado, mas as condições dos exploradores são muito precárias, os mais antigos dizem que não mudou nada e que continua tal e qual foi no final do século passado. Mas não sei se vou ficar por muito tempo, mas não diga nada a ninguém quero fazer surpresa na minha chegada, talvez próximo ano eu volte.

Abraço de seu irmão, Antônio”

Mas no ano seguinte ele não voltou. Anos mais tarde sobre da malária. Tomou coragem e foi contar a Joaquim. A morte de Antônio o abalou profundamente, foi um trauma muito grande. O irmão era seu maior amigo. Após a notícia sofreu com uma grande depressão mas com a ajuda de Joana conseguiu vencer, Joana que anos anteriores tinha sofrido com a mesma doença.

Junho de 1928. Joana sofre de depressão por longos 9 meses. Antônio foi quem a ajudou a superar seus medos.

Para Joaquim, 1943 foi um ano muito difícil, por causa de sua depressão. Largou o emprego e não ligava mais para amigos. Viveu realmente um período muito difícil. Não era mais vendedor de livros, passou a ser comerciante, ou melhor barraqueiro, arrumou um ponto em uma barraca na paria e por lá ficou trabalhando até o último dia de vida. Durante o período de Depressão Joana, junto com Lalinha, namorada de Joaquim na época (e por quem mais dedicou seu amor), deram continuidade ao trabalha na barraca. Sérgio. Lembrava-se, não gostava dela tomar conta de uma barraca, e vez ou outra ia lá “fiscalizá-la”.

O noivado de Joaquim com Lalinha, foi uma felicidade para a mãe que pensava que Joaquim nunca iria se casar. Mas a vida prega muitas peças. Assassinato, esse foi o fim do homem mais trabalhador, depois de seu pai, que Joana já tinha visto.

Era verão de 1948, os Empregados de Joaquim disseram que se despediram dele perto das 11:00 h da noite, horário em que a barraca da praia fechava, e o deixaram para terminar de fechar a barraca, no dia seguinte tinham que acordar cedo para pegar os cocos e já estava tarde.

No dia seguinte quando regressaram com os cocos, viram a barraca aberta, o que era de costume, Joaquim sempre era o último a sair e o primeiro a chegar. Mas ao entrarem a barraca estava toda revirada, com sangue perto do congelador. Dias depois foi achado um corpo perto de um córrego e a perícia afirmou que ele morreu com uma pancada na cabeça e dois tiros no peito. A mãe de Joana foi ver o corpo e confirmou que pertencia mesmo a Joaquim.

Ele foi cremado, e suas cinzas jogadas no mar.

“Joana, quando eu morrer quero ser cremado.”

“Não fale isso Joaquim, tu sabe que eu não gosto de falar nesses assuntos”

“Por favor, me escute! Quando eu morrer quero ser cremado.”

“Por que você está falando isso agora”

“Me deu vontade. Falei ao Francisco antes dele viajar sobre esse desejo, e Lalinha também está sabendo.Sei que vou morrer logo.. Só queria que ele estivesse aqui quando tudo acontecesse.”

“Quando tudo o que?”

“Quando eu morrer” ― Falou tristemente

“Ora Joaquim, ninguém sabe a hora que morre, você ainda vai viver muito”

“Queria que isso fosse verdade, mas sei que minha vida é curta. Só estou vivo por causa de meus amigos. Já era para ter morrido outras tantas vezes. Você conhece o Félix?”

“Aquele seu amigo dono do jornal que você trabalhou?”

“Esse mesmo. Ele me falou que estão só esperando a hora certa.”

Foi seis meses antes de sua morte que tiveram essa conversa. Curiosamente Francisco tinha regressado para o Brasil duas semanas antes. Lalinha disse depois que ele foi morto pelos governistas. Junto com alguns amigos ele estava preparando um Dossiê contra alguns políticos estaduais e que poderiam até incriminar o presidente Dutra.

Francisco.

O último a morrer. Não fazia algumas horas que Joana tinha vindo de seu enterro. O irmão viajante, o irmão artista.

Francisco nasceu um ano depois da morte de Clara. Nasceu para acalmar mais o sofrimento da mãe que ainda usava luto.

Ainda pequeno, com 4 anos, sofreu com a terrível seca de 1915, e ainda sofreu com a seca de 1921 junto com todos os outros. O amante das Artes. A imaginação de Francisco, a vida dura do sertão e as várias histórias que gostava de escutar tarde da noite junto com o pai na área de terra batida na sua casa do interior o inspiraram para pintar, desenhar e esculpir tantas obras de arte. A fotografia, essa era a outra paixão de Francisco.

“Vamos mãe deixe eu tira uma foto sua?” ― Com 32 anos, um pouco antes de viajar pela segunda vez para o exterior Francisco tentava persuadir sua mãe a tirar uma foto. Estavam na barraca de Joaquim, na Praia, Sua mãe estava de vestido azul com bolinhas brancas, um lenço na cabeça. E olhava para Ricardo, filho de Paula, correndo na areia.

“Não. Já falai que não gosto dessas máquinas.” ― Falou zangada ― “Tire de sua irmã”

“A Joana e a Paula já tem foto mãe”

Joana olhava a discussão atenciosamente.

“Porque tu não gosta mais dos pincéis, e das telas? São tão mais bonitos. Até hoje eu tenho uma de tuas pinturas na minha sala.”

“Quem disse que eu não gosto, mas a fotografia, mãe.... Ah! A fotografia. É maravilhosa. Ontem até que olhei para alguns quadros em branco que estavam no meu quarto, vou fazer um quadro para a senhora antes de viajar, mas só se a senhora deixar eu tirar uma fotografia da senhora. Vamos mãe, deixa.”

“O que custa mãe tirar uma foto?” ― Falou Paula

“Oh. Que é que é isso. Vocês não vão me deixar quieta, eu não gosto de fotos.”

“Só uma mãe.” ― Insistiu Francisco

Depois de muito tempo, enfim, D. Helena deixou que tirassem uma foto dela. A única foto que se tem. Ela estava em pé e de braços cruzados de costas para o mar, o vestido e o lenço balançavam no vento e ela fazia um sorriso forçado, mesmo com as tentativas de Paula, por trás de Francisco, de fazê-la sorrir.

Anos anteriores, Joana que devia ter 16 anos na época, foi acordada no meio da noite. Francisco bateu em sua rede e chamou.

“Jona, vem cá.” ― Quando eram pequenos todos a chamavam de Jona.

“Francisco? O que é que você quer?” Vá dormir.”

“Não estou com sono, papai foi se deitar, estava com ele até agora escutando as histórias do Sr. Zacarias de Quino. E não ia conseguir dormir se eu não mostrasse isso a alguém.”

“Mostrar o que? Ô Francisco vá dormir.”

“Não ele pode apagar durante a noite.”

“Ele? Ele quem?”

Joana então levantou-se, calçou-se e seguiu Francisco até o alpendre, Andou por traz da casa e viu clareado pela luz da lua, uma pegada.

“Olha Jona, é de Saci.”

“Que Saci. Eles não existem.”

No meio da terra rachada da seca de 21 era notável a visão de uma pegada, e mais adiante de outra, e mais outra, sempre do mesmo pé, nunca se via o par. Anos mais tarde “Os pés de saci” se tornou um dos quadros mais famosos de Francisco.

A escultura foi outra grande paixão daquele menino franzino, de olhos esbugalhados e castanhos cabelos lisos. “Os sombreões” uma escultura feita com argila, fios de nylon e arame, ganhou um dos grandes festivais de artes da cidade, e Francisco nessa época tinha apenas 15 anos. Foi para o Rio de Janeiro e quase que mata D. Helena do coração no dia da partida, tão novo e indo para a capital do país sozinho.

Na capital conheceu artistas importantes, a década de 20 foi à década das artes. Conheceu Tarsila do Amaral, e tantos outros pintores. Voltou para o interior com a ambição de ir morar fora do país e realmente conseguiu.

Depois de fechar o ateliê que montou nos inicio da década de 30, em 1936 viaja pela primeira vez para o exterior. Vai inicialmente par a Espanha.

A Europa da segunda metade dos anos 30. O terror de uma guerra iminente.

Lá ele conhece fotógrafos maravilhosos e se aperfeiçoa na arte da fotografia na França. Depois como ele passou a dizer “O mundo não tem fronteiras”.

Suas fotografias, pinturas, esculturas foram apresentadas nas mais famosas casas de arte da Europa, mas isso muitos anos depois. Com o final da década de 30 veio à segunda guerra mundial. E ele teve que regressar para a América, mas não para o Brasil. Passou dois anos no Chile antes de voltar para o Brasil.

“Há! os Chilenos, Joana você precisa conhecer os chilenos.” ― Deu uma pausa e continuou ― “Nunca um povo me recebeu tão calorosamente, e as belezas daquele país” ― Seu sotaque já não era mais o mesmo 6 anos longe do país tendo contato com as mais diversas culturas e idiomas fez com que sua voz fosse uma mistura de muitos sotaques.

“Mas café?”

“Desculpe Joana, sei que você não gosta de comparações, mas esta será uma boa comparação. Nenhum café do mundo supera o seu. Digo isso pois já conheci 4 países. Conheci a Itália também, não te falei, passei pouco tempo por lá, mas tenho fotografias excelentes na próxima vez que eu vier eu trago mais fotos para você ver.”

É de Francisco que Joana tinha mais fotografias, em muitas ele nem aparecia, mas ela guardava com carinho todas as fotografias que ele lhe dava dos lugares que visitou. No álbum ela folheava três páginas cheias de retratos de mais diversos lugares do mundo, e nas fotos em que aparecia, Francisco estava sempre sorrindo.

Retirou uma foto do álbum e olhou atrás.

“Para você recordar o charme de Veneza: as gôndolas. Dizem que quem se apaixona em Veneza, será feliz para sempre. Hoje pus uma foto de cada um de nós sobre a ‘Ponte Dei Sospiri’, nossa família ficará unida para sempre.”

“As gôndolas de Veneza”, outros dos tantos quadros que ele pintou, e uma das esculturas que enfeitava a sala de Paula. Paula a irmã que ele mais admirava, pela sua força, paixão pela família e por todo o seu carisma.

As idas e Francisco para o exterior sempre forma marcadas por grande tristeza, em compensação fazia-se uma festa em cada chegada. Mas nos anos da ditadura, ninguém sabia como é que ele entrava e saía do país sem ser notado. Foi sobre os cuidados de Francisco que João deixou a clínica de veterinária.

Anos mais tarde, antes mesmo da morte de João. Ela e Paula ficaram escutando a incrível historia dos dois irmãos, na sala de estar da casa de Francisco.

“Lembra da senha? Ah! A Dona Marocas” ― Falou João

“Se ela soubesse como nos ajudou” ―Falou Francisco dando uma gargalhada

D. Marocas, que nunca se casou, era a maior fofoqueira da região onde moravam, no interior, ela sabia da vida de todos ficava na porteira de sua casa e via quem entrava e saí de todos os sítios da região. Antônio, Paula e Francisco uma vez quase mataram ela se susto. Acordaram mais cedo que os pais e antes que ela saísse para vigiar quem saía de casa. Foram até a sua casa e fecharam a porta por fora. Ela ficou desesperada, gritava e gritava, foi preciso que o Sr. Zacarias de Quino arrombasse a porta.

“Naquele dia em que você disse aquilo para mim, João, eu não entendi nada.” ― Falou Joana

No dia em que João pediu para que Joana cuidasse da família dele ele disse que “a chave para D. Marocas estaria em sua caixa de correios”. As suas notícias vindas do exterior eram mandadas diretamente para a família, através de recados uma vez por semestre.

“Foi realmente uma idéia fabulosa. Francisco era um artista conhecido, e suas obras de artes eram mostradas nos quatro cantos do mundo. Quando soube da notícia do exílio, falei com ele para ele ficar mandando notícias minhas para o resto da família.” ― falou João.

“Eu entrava no Brasil disfarçado, com identidades falsas e com vários nomes diferentes. Com meu nome mesmo entrei somente 3 vezes. Todas para uma exposição. Precisávamos de uma senha, de um lugar para esconder os bilhetes e de uma pessoa para apanhá-los.”

“Foi aí que entrou Joana?” ― Falou Paula

“Isso mesmo. Disse a Joana onde podia encontrar a chave para a quarta gaveta de minha estande da clínica. Ora os militares tinham revirado tudo, mas não a caixa de correio de minha irmã. Mandei o primeiro recado com a chave. A Dona Marocas, a que contava tudo sobre minha vida no exterior, estava com minha irmã. Nenhum militar iria saber, e ela só ia para a clínica duas vezes por ano, para apanhar o recado que Francisco tinha deixado.”

“Eu vinha deixava o recado, e não falava com ninguém da família. Os militares podiam suspeitar. Foram pelas cartas que todos sabiam como estava João e eu, mas ninguém sabia como elas simplesmente apareciam na gaveta.”

“Quando a gente mandava uma carta, no final da página a gente colocava, não a data de emissão, mas a data que chegaria a próxima carta.” ― Falou João

“Eu demorei um pouco para perceber isso. Na carta que tu mandou junto com a chave só dizia o que aquela chave abria e uma data” ― Falou Joana

“E nós não notamos? quando Francisco chegou do Brasil em 69 e viu que você não tinha pegue a mensagem do semestre anterior, decidimos falar diretamente com você, mas quem poderia fazer isso?”

“Arrumei uma exposição de última hora, para poder vir ao Brasil e nos encontrar na galeria sem suspeitas. Lembra que os militares guardaram todas as minhas obras em um galpão e me deixaram trancados um hotel por dois dias até o dia da exposição? Eles confiscaram tantas peças minhas, das 36 peças que eu trouxe para expor, somente 20 puderam ser vistas.”

Muitos dos exilados, não acreditam nas façanhas do “corajoso Francisco”, como falavam, alguns faziam cirurgias plásticas, para se tornar irreconhecíveis para os militares e poderem entrar no Brasil sem suspeitas, mas Francisco foi com muitos disfarces, várias identidades falsas e muita coragem.

“E eu ia fazer cirurgia? foi com esse rosto que Valenttine me conheceu.”

Vallentine.

O maior amor da vida de Francisco, uma cantora francesa de voz belíssima e longos cabelos loiros e olhos azuis, pele clara. Depois que ele regressou para o país de vez ela largou a Europa e veio junto com ele morar no Brasil, no dia da reunião dos quatros irmão na casa de Francisco ela ficou o tempo todo do seu lado de seu marido olhando e se maravilhando com a história que também participou.

Mas na hora em que Francisco contou de sua fuga espetacular no bagageiro de um avião que transportava cargas para Portugal ela realmente ficou aflita. Mesmo já sabendo de todos aqueles detalhes.

Francisco o último a morrer, mas não o último a vê-la. Na saída do cemitério ela viu uma pessoa que não via a 16 anos. Sua irmã Paula a estava esperando. A única que viu depois de morta, era a segunda vez em que aparecia. A primeira para contar da morte de Francisco. Acidente de carro. E hoje para contá-la se sua própria morte.

O álbum, agora fechado, repousava sobre seu colo. Tantas imagens, tantas lembranças.

Era dia 31 de Dezembro de 2005, o mundo estava todo em festa, mas ela ali sozinha sentada sobre sua cama tudo parecia triste, ao seu lado a roca de fiar de sua mãe. “Boas lembranças dessa roca” sussurrou.

D. Helena.

A matriarca da família, uma mulher de coragem, sofreu com a morte da terceira filha, mas ainda assim conseguiu coragem para continuar vivendo. Enfrentou tantos períodos difíceis como as secas de 1915, 1921, 1932, a partida do filho para a Amazônia, a morte dolorosa de seu primogênito. Mas entre tantas paixões a mais sofrida foi de seu marido, as cobras. Picado por uma cobra não sobreviveu ao seu veneno, D. Helena lembrava-se bem de como ele delirava e suava frio. Foi em 1951, no começo de uma que seria uma das mais fortes secas do século XX.

Enterrou sozinha seu marido ao lado da casa, não quis chamar nenhum dos filhos para o enterro.

Joana chorou muito um mês depois quando a foi visitar e sua mãe falou que seu pai tinha morrido. A roca de fiar foi a herança deixada por ela. Dois anos depois ela veio a falecer, sendo mais uma vítima da mesma seca que matou seu marido. 3 anos de seca, 3 anos de sofrimento.

Sérgio não gostava daquela roca, dizias que trazias energias negativas para a casa. Mas até ele há muito tempo já se fora. Lembrava-se que seu enterro foi um dia depois da posse de Itamar Franco na presidência da República.

Um século de histórias, de alegrias e de tristezas. As mortes da família, sempre foram sofridas para uma senhora que estava preste a completar 101 anos. Naquela noite, podia se ouvir alguns fogos de artifícios lançados antes do tempo, ainda não era meia-noite. Passado algum tempo sentada, olhando o álbum de fotos fechado sobre seu colo colocou-o, então, em cima da roca de fiar, e calmamente deitou na cama.

Os fogos de artifício troavam lá fora. Era 1° de Janeiro de 2006. Paula entrou calmamente no quarto, segurando uma linda menina de lisos cabelos castanhos e olhos amendoados.

“Vamos clarinha, chame sua irmã, estão todos a esperando” ― sussurrou

Enfim morreu Joana, em sua cama depois de relembrar os momentos bons e tristes de sua família, naquele que foi mais um dia de tristeza para ela, mas um dia em que as pessoas estavam alegres, era assim que queria, morrer num dia em que todos estavam alegres. Do jeito que sempre esteve, pois apesar de todas as dificuldades, das separações da família e do marido alcoólatra sempre esteve feliz. Joana dormiu para nunca mais acordar.

Bruno Edson
Enviado por Bruno Edson em 28/10/2007
Reeditado em 27/08/2011
Código do texto: T713295
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.