O NATAL NO MORRO DA CAPIVARA.
Nem bem o sol deu o ar de sua presença majestosa, na véspera de natal, a cachorrada do Chico Corote começou a latir, seguindo o carrinho de coleta de materiais recicláveis de seu dono. Ele apenas encostou a porta de seu barraco, às margens do poluído Ribeirão do Sapo. -"Natal. Um dia ainda farei uma grande festa pra essa criançada da favela." Os quatro cães eram a companhia do homem magrelo e barbudo. Aparentava ter o dobro de seus trinta e nove anos. Ele ia recolhendo os papelões pelas ruas, enquanto conversava com os cachorros. -" Darti Veider, toma a dianteira! Donatello, vai pra trás! Isso, garoto!" Inexplicável era a forma como os cães lhe obedeciam. O cachorro preto saiu da frente do carrinho e se colocou atrás do dono. Donatello, vira latas pulguento, avançou manquitolando e se colocou a frente. Deu um latido pra anunciar que estava na dianteira. Era o chefe agora, abrindo passagem e protegendo os demais. Saíram do morro da Capivara e passaram pelo Jardim São Paulo, um bairro da periferia. Donatello botou meio palmo de língua pra fora. Chico Corote deu um grito. -"Sansão, passa pra frente!" O cachorro obedeceu. O sarnento Donatello olhou para o dono e latiu, como que dizendo que suportava a caminhada pela longa avenida do estado até o shopping Eldorado, no bairro chique dos Campos Elíseos. -"Vai pra trás, Donatello. Vai junto do Yoda. Tú ainda está se recuperando daquele acidente com a moto!" Disse o catador de recicláveis. Uma hora depois, ele tirou uma garrafa de água do carrinho. -" Natal não é comilança, presente e rabanada. É Deus no coração. Você já comeu rabanada, Yoda? Já comeu, Donatello? Nem eu comi essa tal de rabanada! Nem sei do que é feito." Sentado no meio fio, deu de beber aos cães. Abraçou cada um deles. Em algumas casas, as luzes de natal piscavam. Horas andando debaixo de um sol escaldante. Um gorro vermelho jogado no chão. Chico limpou o gorro e o colocou na cabeça. -"Ho, ho, ho... feliz natal. Estou bonito, cachorrada??" Um carro passou. -"Ei. Tá de Papai Noel ou de saci?" Ele sorriu. -" Feliz natal pra você, engraçadinho. Ao menos me viu, os pobres marginalizados e a escória. Bonita palavra, escória. Meu finado pai me chamava de escória." Uma padaria. Os cães vidrados nas máquinas de assar frango. Uma grande fila de pessoas pra reservar assados pra ceia natalina. Chico Corote tirou umas moedas do bolso. Tirou o boné e passou os dedos no cabelo pixaim. Uma máscara no bolso. -"Na padaria, vou de máscara." Os cães vigiavam o carrinho lotado de reciclagem. Chico Corote entrou na padoca. Os chinelos gastos, cheios de arame e prego. As pernas finas. A camisa do Corinthians, ainda com o patrocínio da Kalunga. Um rapaz gritou. -"Vai, Curintias!!!" Zé Corote sorriu com os poucos dentes da boca. -"Vai pra segundona! Esses de agora não têm a raça do Neto, Jacenir, Márcio e Tupãzinho. Pessoal, tá no livro de Provérbios. Mais vale um casebre com pão bolorento e amor do que uma mansão com banquete e brigas! Enfeitem a casa mas também enfeitem o coração." Um gordinho bronqueou. -" Ei, Michel. Essa padaria já foi melhor frequentada!" Zé Corote nem ligou pras risadas. Chegou sua vez de ser atendido. Pediu dois pães e cem gramas de mortadela. -"Vai ter churras de mortadela na favela." Zombou alguém na fila. Ele foi ao caixa. Uma olhada no panetone. -"Queria levar um desses pro Juninho." O filho de sete anos morava com a mãe, no morro do Lajeado. Francilene o deixara há cinco anos. -" Ou você deixa o álcool ou lhe deixo, Chico!" Disse ela, firme. Ele escolheu o álcool. O caminhoneiro Rubinho, atual marido de Francilene, cuidava muito bem dela e de Juninho. Há três meses ele não via o filho. Ele pagou a comanda. Estacou na porta do estabelecimento. -"Turma. Eu não tenho nada e só posso desejar a todos um feliz natal. Eu não tenho sabedoria nem estudo mas aprendi que sem Deus não somos nada!" Alguns aplausos tímidos. Uma moça chorou, enquanto filmava tudo. Outros cochichavam. -" O Zé Ninguém virou pastor!? Ridículo!" Chico Corote se juntou aos cães. Dividiu sua refeição com eles. Os cães fizeram festa. A moça do celular saiu da padaria. Ela filmou aquele homem, dividindo seus pães com os cães. O dono da padaria lhe deu algumas caixas de papelão. -" Tome, amigo. Até agora ninguém tinha me desejado feliz natal. Você foi o primeiro!" Uma nota de vinte reais na mão do Chico Corote. -" Deus o abençoe, meu amigo! Feliz natal!" O carrinho pesado, sendo puxado pelo Chico, pelo acostamento. Um bairro. Muitos catadores vieram antes e deixaram pouco material pra ele. O shopping mais a frente. As pessoas com pressa. As pessoas com sacolas. O estacionamento lotado. O vigia o barrou. -"Dê a volta. Nos fundos têm muito papelão!" Zé Corote agradeceu. A cancela. Uma estradinha, lateral ao shopping. Uma chuva fina. Os cães latiram. Uma criança saiu correndo do MC Donald's. Chico Corote largou o carrinho. Um rapaz no celular, dirigindo uma caminhonete. Uma curva no estacionamento. Os cães nervosos. Os pais da criança amedrontados. O carro ia colher a criança. Chico Corote deu um salto e jogou a criança pra calçada. -"Ronaldo!!!!" Gritou ele, lembrando das defesas espetaculares do ex goleiro do Coringão! O carro atingiu o catador de recicláveis. O Chico bateu a cabeça no chão. Os pneus dianteiros passaram sobre ele. Os cães latiram. Os seguranças vieram. A polícia chamada. O motorista da caminhonete foi autuado. Uma multidão se juntou. A criança nos braços dos pais. O pai da criança foi até o corpo do Chico, estendido no asfalto do estacionamento. O pé torcido. O velho chinelo do lado. O pai da criança pegou o chinelo e ficou olhando pra ele. -" Esse cara era miserável e salvou meu filho! Já joguei fora dezenas de chinelos seminovos, em melhores estados que esse." Chico era um herói. Aplaudido ao ser imobilizado e colocado no carro do Resgate. Ele abriu um dos olhos e olhou para os cães. Só viu os vultos de seus amigos fiéis. A voz não saiu. O braço doía. Tudo doía. A sirene. Os paramédicos trabalhando. Os cães seguiram a ambulância até duas quadras. O fato ganhou os noticiários televisivos. Os jornais destacaram aquele gesto valoroso. O Chico morreu seis horas depois de dar entrada no hospital. Dia de natal. Os clientes da padaria comentavam sobre o gesto nobre do catador de papelão. -"Ele desejou feliz natal a todos. Eu me lembro!" Disse Michel, um dos proprietários. -"Prova de amor maior não há, que doar a vida pelo irmão. Eis o verdadeiro sentido do natal, o filho de Deus se fez homem e deu a vida pela salvação de todos!" Disse o padre, no velório do Chico. Alguém disse, a um repórter de tevê, que o sonho do Chico era dar uma festa às crianças do morro da Capivara. Voluntários se mobilizaram pelas redes sociais. O morro foi invadido por dezenas de pessoas vestidas de papai Noel. As crianças ganharam brinquedos, doces e outros presentes. Havia cama elástica, tobogã e trenzinho para a molecada do morro. Um palco foi montado no campo de futebol. Teve apresentação de grupos musicais e atrações circenses. Voluntários distribuíam cachorros quentes e refrigerantes aos moradores. Um caminhão com cestas básicas chegou. A fila de moradores se formou. O prefeito e alguns vereadores passaram pelo local. -" Vamos revitalizar o morro da Capivara. Aqui terá uma rua com o nome do Chico Corote, nosso herói!" Gritou o prefeito, ganhando aplausos. Havia uma comoção misturada com alegria no ar. O pai da criança, salva pelo Chico, arcou com as despesas fúnebres. -"O Chico será enterrado com um belo terno, no jazigo de minha família, no principal cemitério da cidade. O que ele fez por mim não tem preço." Disse o pai da criança, eternamente grato ao catador de recicláveis. Francilene levou Juninho pra se despedir do pai. Os quatro cães não saíram debaixo do caixão do dono. O Chico realizou seu sonho de dar uma grande festa no morro. Mais que isso, teve seu rosto estampado nas camisetas distribuídas às crianças das escolas e aos clientes dos pet shops, já que era um amigo dos animais. O vídeo daquela moça que o filmou, brincando e dividindo o lanche com os cães, viralizou nas redes sociais. Houve briga entre os candidatos a novos donos dos cães do Chico. Dois anos depois, o morro foi revitalizado. Ganhou asfalto, redes de água e esgoto, posto médico e base policial. Os barracos foram trocados por casas de alvenaria. A rua principal ganhou o nome do Chico Corote. O bairro passou a se chamar Jardim São Francisco, por coincidência o santo protetor dos animais e criador do presépio. FIM