328 - Uma Vida
Agora estava, de novo, só. Fazia as suas tarefas de modo lento e pausado. Ninguém lhe cobraria nada. Quando conheceu Rafael eram, ambos, operários numa Fábrica de material de guerra que o tempo de paz tornou obsoleta até fechar por ordem governamental. Comiam juntos, conversavam e, quando o turno era o mesmo, arranjavam tempo para troca de beijos e olhares. Um dia ele pediu-a em casamento e, marcada a data, foram ao Registo Civil. Ele com a roupa domingueira e ela com o mesmo vestido. Não houve alianças, nem ramo de flores, nem convidados. Alindou-se como foi possível e foi com ele depois da cerimónia preparar o jantar na nova casa. Cama estreita, mesa cambaia, louça herdada dos avós. Recorda-se de ter sido muito amada e de conseguir ser feliz com pouco. Fez falta aos seus. Era ela quem tratava dos irmãos mais novos, quem arrumava a casa, quem preparava a comida depois de chegar do trabalho. Reuniam-se à noite quando os pais regressavam do campo e a conversa era sempre animada. Avisou-os de que casava mas ninguém esteve presente. Era dia de trabalho e o casamento era só um acerto para nova vida. Ao tempo, no seu meio social, as moças nem casavam, juntavam-se e seguiam o homem para onde quer que fosse. Por isso admirava o marido legalista, honesto, confiável. Foram anos de grande companheirismo. A vida mudou para eles e juntaram dinheiro para comprar terras e casa. Não tiveram filhos seus mas criaram várias crianças que agora seguiam os respectivos caminhos. Ficar sozinha era outra maneira de viver. Olha-se para dentro e para o passado, olha-se para os outros e achamos que se podem ler. Hoje deixaram dentro da cancela um gato preto que ela já acalentava. Sorte a do bichano, sorte também de Manuela que passou a ter com quem partilhar os silêncios.