326 - D. Graça

Estava ali mas não sabia quem era, de onde viera, quando a deixaram entregue aos cuidados de meia dúzia de mulheres vestidas todas de branco. Nas vezes em que se achava a sós, via no espelho uma velha que não conhecia. Olhavam-se e, quando ela sorria, a velha sorria. Numa das vezes achou que a senhora a imitava e, descontente, deitou-lhe a língua de fora. Ficou com a impressão que a mulher fizera o mesmo mas não teve tempo para certezas. Alzira, a maior de todas, pegara-lhe no braço e, em menos de nada, tinha sopa à sua frente. Teve a certeza de que a deveria comer porque a mulher de branco fazia-lhe chegar a colher à boca ainda cheia. Depois a mesma velocidade com o peixe cozido, a couve-flor e as batatas. A seguir pediu café e todos riram. Naquela casa nem café nem vinho, naquele lugar todos lhe eram familiares e estranhos ao mesmo tempo. Chamavam-na D. Graça mas ela nunca respondia por se esquecer que o nome lhe pertencia. Quando era dia de terço vinham duas senhoras perfumadas e um cavalheiro que dava o lamiré nos hinos que todos cantavam mal. Ela era levada para o grupo e aborrecia-se muito com as rezas. Percebeu que se não colaborasse, se fosse mexendo no colar da que recitava as orações, num instante a despachavam para junto das que, em cadeiras de rodas, dormiam ou, aparvalhadas, nada tinham para dizer. Hoje, depois de lhe darem banho, vestiram-na, pentearam-na e, para acabar o serviço, descuidaram a vigilância. Na varanda comeu as flores dos vasos e sentou-se a apanhar sol com o gato ao colo. Cabeceava com sono quando as escutou chamarem por uma D. Graça. Achou que era a ela que procuravam mas resolveu calar-se. Bem sabiam todas as de branco que ela não atendia a chamados entre outras razões por ser outro o seu nome, o tal que agora não lhe ocorria.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 28/11/2020
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