324 - A Doença do Rei
Com as dores a tomarem todo o ventre o Rei mordia o lençol para mostrar, aos tantos que ali estavam, uns míseros restos de bravura. Um Rei, sabia-se, era de outra e mais nobre estirpe, da que morre sem nunca parecer fraca. Com um gesto de mão, fez sair os nobres visitantes e, gemendo, pediu que lhe fechassem a porta da Câmara. Alguém acudiria ao chamado se ele badalasse a sineta. Quando sentiu apenas o cheiro dos perfumes e lhe soaram distantes os passos no lajedo, soltou os urros e percebeu que lágrimas abundantes corriam agora o seu rosto envelhecido. Sem trajos de seda e brocado, sem ter amaciado de óleos o corpo e o cabelo, ficava igual ao menor dos seus vassalos. Suava febril e recusou a nova sangria que lhe propunha o físico real. A de ontem abatera-lhe o que tinha de esperança e ânimo. Também não queria lá o Bispo que vinha espreitar o tempo que faltava para, a bem ou a mal, o ungir. Deu ordem para que ninguém viesse com recados e problemas do Reino, nem queria a canja de galinha ou outra qualquer comida que lhe havia de fazer mal. A seguir aos urros, gritava Sua Majestade mais firme, suava e torcia-se como que a resistir ao avassalamento que o tomava. Depois, exausto, deixou que a cabeça resvalasse da almofada e adormeceu, enrolado sobre si mesmo, mitigando deste modo a dor insidiosa. Boca aberta, assim acantonado ao fundo da cama de dossel, o Rei parecia um menino calvo enfim sereno. Quando, ao outro dia, foram abertos os reposteiros e o sol iluminou o retrato da Rainha, a mesa onde o serviço de Sèvres mantinha frio o chá de tília e intocados os biscoitos de canela, deram pela falta do Rei. No afã da procura acharam um homem cheio de medo sob o tálamo real.