Questão de Sorte
Quando entrei no bar ela aparentava já estar bêbada. Estava fazendo uma cena, em pé sobre uma cadeira. Nunca a tinha visto ali. Não era feia, mas também não era exatamente bonita. Parecia castigada pelo tempo. Não fisicamente, mas na alma. Como uma pessoa que vinha sendo derrotada pela vida, e que estava claramente incomodada com o placar.
Eu podia me identificar com isso. Afinal, já estava acostumado com a sensação de derrota inevitável.
Me aproximei do balcão do bar e pedi um chopp ao Silva, o dono do bar e garçom de plantão, que ouvia um jogo da seleção em um rádio de pilha.
Ele encheu o meu copo e me entregou.
- Obrigado. – Agradeci, depois de tomar um gole... – Quanto tá o jogo?
- 1 x 0 pra Argentina.
- Normal – Respondi.
- Normal pra você que é um sem pátria. – Ele falou em tom de zombaria.
- Minha pátria é Pernambuco, meu amigo. O resto é resto.
Ele riu.
- Qual é a dessa moça ai no bar? - Perguntei a ele.
- O nome dela é Marisa. Ela perdeu o marido semana passada. O cara era policial. Ele descobriu que ela estava tendo um caso com um colega de trabalho. Ele foi lá, matou o urso e depois meteu uma bala no juízo. Ele bebia bastante aqui. Mas eu nunca a tinha visto.
- Pesado. Agora estou entendendo.
- Só espero que ela não quebre nada... – Ele disse, enquanto limpava um copo com uma flanela.
Silva não parecia muito de bom humor naquela noite. O que era provavelmente motivado pela derrota da seleção. Ele se virou de costas e voltou ao serviço enquanto eu fiquei encarando meu copo de chopp.
- TEM ALGUM HOMEM DE VERDADE AQUI? - A mulher gritou batendo palmas.
Praticamente todos os presentes olharam pra ela, mas ninguém respondeu. Então ela desceu da cadeira, tirou um revolver prateado de uma bolsinha. Virou o tambor e jogou todas as balas sobre a mesa. Pegou uma única delas, beijou a ponta e recolocou na arma. Depois girou o tambor e gritou.
- HOJE EU VOU DAR PRA QUALQUER HOMEM QUE QUISER TENTAR A SORTE.
Ela deixou a arma sobre a mesa e se sentou.
Silva observou alarmado a situação e pegou o telefone provavelmente para chamar a polícia.
- Deixa. – Eu falei. – Deixa que eu resolvo.
- Você é doido?
- Talvez um pouco.
Deixei meu copo sobre o balcão e me aproximei dela.
Marisa me olhou de cima abaixo e riu.
- Eu estava esperando um pouco mais, mas ok.
Estendi minha mão e ela me entregou a arma com um sorriso doentio. Eu pude sentir os olhos de todos os presentes sobre nós.
Peguei o revolver nas mãos e me afastei um pouco para trás. Marisa me olhava, tremendo de expectativa, segurando um copo de conhaque nas mãos.
- Encha um copo pra mim, meu bem. Se for pra eu morrer, que seja pelo menos depois de um gole.
Marisa se virou pra encher o copo com mais conhaque e nesse momento conferi a arma enquanto ela não estava olhando.
Ela me deu o copo cheio e eu tomei de uma vez só.
- Mais uma coisa – Eu disse. – Se eu não morrer, você deixa a arma comigo, ok?
- Ok. – Ela respondeu.
Levei o revolver até a minha têmpora direita, sem desviar o olhar dos olhos de Marisa e puxei o gatilho.
Ela caiu sentada na cadeira assim que ouvi o Click.
Pude ouvir todo o bar respirar aliviado ao meu redor.
- Me dê as balas, meu bem. – Falei seriamente.
Ela juntou todas e me entregou.
Peguei as balas e a arma e levei até o balcão.
- Guarda ai, Silva. – Falei.
Ele me olhou espantado, como se não acreditasse no que eu havia acabado de fazer.
Voltei para a mesa de Marisa e sentei do lado dela.
Ela estava chorando.
- Eu não valho nada – Ela me disse entre lágrimas. – Sou a pior pessoa do mundo.
- Duvido muito – Respondi.
- Você não sabe de nada.
- Já conheci muitas pessoas ruins. Você não me parece uma delas.
- Como você pode saber? Você não me conhece.
- Tudo bem. Tudo bem.
- Você podia ter morrido.
- Podia.
- E seria culpa minha.
- Não. Não foi você que puxou o gatilho.
Ela me olhou, chocada. Pegou um guardanapo e começou a enxugar os olhos. Mas as lágrimas não paravam de escorrer.
- Eu me sinto tão culpada.
- Eu sei. Mas a escolha não foi sua. Não carregue nas costas o peso de uma escolha dele.
Marisa me olhou espantada, quando percebeu que eu sabia do que havia acontecido.
- Vá pra casa, Marisa. Tome um banho e tente dormir. Você está precisando. – Continuei.
- Mas eu falei que iria sair com você...
- Eu não iria pra cama com alguém no seu estado. Talvez quando você se sentir melhor.
Tirei uma caneta do bolso, peguei um guardanapo e escrevi o meu número de telefone, e meu nome bem abaixo.
- Me ligue quando estiver bem. – Falei.
Marisa guardou o guardanapo na bolsa e me deu um sorriso amarelo. Fiz um sinal pra o Silva e ele trouxe a conta dela. Marisa pagou, pediu um Uber e foi pra casa.
Quando voltei ao balcão, ele me olhou com espanto.
- Que porra foi essa, meu amigo? Você é doido?
- Você contou as balas? – Perguntei.
- Não...
- Conte.
Silva abriu o saco e contou sete balas. Abriu o tambor do revólver e viu que não havia nada lá.
- Só tem sete aqui.
Tirei a bala que faltava do meu bolso e botei em cima do balcão.
- De nada. – Respondi.
- Filho de uma puta – Ele disse, com um sorriso incrédulo no rosto.
- O que minha mãe tem a ver com isso? Eu só não ia deixar um negócio desses depender da sorte. Comigo nunca dá certo.
Ele encheu outro copo de chopp e botou na minha frente.
- Fica por conta da casa. Esse e todos os outros que você for tomar hoje.
- Ah Silva. Assim você me deixa mal acostumado.
Nós dois rimos e nesse exato momento o Brasil fez um gol e empatou o jogo, aos 48 do segundo tempo.
A partida ia pros pênaltis. Segundo o Silva, os pênaltis eram sempre questão de sorte.
Pelo menos agora temos alguma chance. – Ele disse.
Talvez a seleção tivesse mais sorte do que eu. – Pensei. Mas mais uma derrota não era nada que fosse tirar o meu sono.
Antes do primeiro chute, meu celular vibrou.
Quando conferi, era uma mensagem de um número desconhecido.
Dizia apenas “Obrigada”.
Guardei o celular no bolso, bem a tempo de ouvir que o atacante da Argentina tinha acabado de mandar uma bola na trave.