O casarão

Era um casarão como vários outros daquela época, porém, naquela pequena cidade do interior de São Paulo, era um dos poucos e se sobressaía, pois ficava bem no centro da cidade, a poucos passos da praça principal e, ao contrário de muitos, não se escondia atrás de muros e grandes jardins. Era mesmo bem devassado, qualquer transeunte vislumbrava boa parte de seu interior. Naquela época, isso não representava perigo.

A família que o construiu já chegou numerosa, pai, mãe e quatro filhos, mas a construção já denunciava a intenção do casal de povoar todos aqueles cômodos. De fato, outros quatro filhos viriam completar a prole que, na companhia dos ajudantes que ali orbitavam, ocuparam todos os espaços do grande casarão. Foram apenas vinte anos da família naquele casarão, mas esse tempo marcou indelevelmente cada um de seus membros, que ali viveram seus melhores anos. Nunca imaginaram que partiriam dali tão cedo, nem que ele fosse dar lugar a um moderno prédio de apartamentos. Em silêncio, cada um chorou seu fim como quem vê destruída sua história, mas, passados outros tantos anos, aqueles que ali viveram contam hoje com gratidão as histórias do casarão.

Era final da década de 1940, pouco após o final da Segunda Grande Guerra, e a esperança de dias melhores tomou conta de todos. E 1949 chegou para o casal e os quatro filhos como o início de uma nova etapa de vida, um recomeço agora mais longe - cerca de 200 metros - dos pais e sogros. Enquanto o pai cuidava principalmente do negócio de beneficiamento de arroz, mas também das compras diárias da casa, a mãe se desdobrava como professora primária, mãe e dona de casa. Essas eram as obrigações, mas essa mulher tinha outros tantos papeis, que desempenhava com igual ou maior prazer: o de filha, de irmã, de amiga, de católica, de benfeitora, de cidadã amante de sua cidade. Na época do casarão, todo tempo tinha que ser muito bem empregado, e ela soube fazê-lo.

O casarão ocupava cerca de 1/3 do quarteirão que dividia com apenas dois ou três vizinhos laterais. À sua frente e ao seu redor, famílias que ali viveram a vida toda. Logo na esquina, o clube, a padaria e o armazém completavam um dos quatro cantos da imponente Praça 21 de Abril, ponto de encontro de todos os cidadãos. Aquele quadrilátero um pouco mais estendido compreendia quase tudo de importante para aquela família. Todos os tios maternos, os primos, seus próprios casarões, os avós maternos e, por um tempo, também os paternos, alcançáveis a poucos metros. Essa curta distância permitiu uma convivência íntima dos primos, e havia primos de todas as idades, portanto, não importa quão jovem ou criança fosse, havia um primo para interagir.

O casarão sempre se mostrou generoso, vivia cheio deles, bem como de outros amigos. Não era o mais bonito ou luxuoso entre os da família, ao contrário, era o mais simples, não tinha piscina, nem escadarias. Mas isso era uma vantagem; jovens e crianças se sentiam à vontade nos grandes espaços só de cimento. O que faltava em luxo sobrava em gente. E se não havia primos ou amigos por perto, havia sempre um irmão ou irmã de idade próxima para supri-los.

O grupo escolar onde trabalhava a professora e estudaram todos os filhos estava a 200 metros, tão próximo que os rebentos eram levados à mãe para amamentação no intervalo das aulas. Todas as poucas opções de lazer também estavam a poucos passos do casarão. O clube recreativo, na esquina, era onde aconteciam os bailes frequentes e os especiais, de debutantes, da escolha de miss, e especialmente os de carnaval. Nessa ocasião, o casarão se enchia de fantasias, confetes, serpentinas e lança-perfume. Os dois cinemas da cidade rodeavam a praça e eram programa regular de todos, inclusive da mãe, que ali fazia uma pausa às segundas-feiras, sozinha, ocasião em que pai e crianças se deliciavam com sorvetes de limão, coco ou nata, sentados na mureta da frente da casa. E, claro, os cinemas sempre ofereciam a discrição necessária para os namorados, que a praça, ao contrário, escancarava.

Mas nem só de finais de semana viviam os jovens, todo dia era dia de encontros, e então era a praça, grande, bonita e democrática, que se abria para recebê-los. Bancos de cimentos sob árvores frondosas circundavam a fonte luminosa. Ali ficavam as crianças, as babás, as famílias. Aos domingos, a banda municipal, com seus músicos sérios e uniformizados, sob a batuta do eterno maestro, no alto do antigo e conservado coreto, animava todos que se juntavam na grande área ao seu redor. Caminhos mais discretos e bancos convenientemente distantes uns dos outros permitiam que novos e antigos namorados cumprissem seus rituais.

A grande igreja matriz, num dos limites da praça, determinava os horários de movimento ao ritmo do início e final das missas. A imponência da igreja católica naquela cidade parecia decretar a autoridade e a influência da religião predominante. Hoje, no entanto, e apesar de seguir reinando na praça, a matriz transformou-se em testemunha do minguamento de seu rebanho.

O casarão não mais faz parte daquela paisagem, mas a praça se mantém inteira, renovada e disposta a guardar as lembranças de todas as épocas.

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 19/11/2020
Reeditado em 20/11/2020
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