O ABISMO
 
Volto para o lugar em que deixei parte do meu ser. Meu corpo treme, os dedos suando envoltos pelo metal gelado dos anéis. Com um soco contínuo na minha barriga, vomito um pouco antes de chegar ao meu destino. O líquido negro mancha minha boca e me deixo cair na grama morta, áspera. Meus músculos doem como nunca, e o desejo de que eles simplesmente se estourem é ardente.
O coração pulsa como um louco, rápido, desesperado. Quase consigo ouvi-lo implorando por ajuda. Sei que está sangrando, numa hemorragia caótica, espalhando-se, pingando por todos meus tecidos. O sangue infiltra-se nos lugares mais obscuros e, pouco por pouco, tenho a consciência absoluta que uma enchente será a causa da minha morte.
– Vem! Ajuda-me! – Ouço-a gritar o fundo do Abismo.
Levanto com toda a força que tenho – não é muita –, meus órgãos latejam em uma desejo afobado de parar a inundação.
Está quente e abafado. Perto do Abismo, o clima sempre é instável. A camiseta gruda na minha pele como um carrapato, sanguessuga. Preciso tirar. Preciso me livrar. Rasgo a camiseta, rasgo qualquer pedaço de tecido que toca meu corpo. Respiro fundo. Me sinto mais calma. Vulnerável, mas calma.
Tropeço, entre passos, até alcançar a plaquinha mofada, carcomida pela podridão. Abismo. Cuidado. Tusso o resto de líquido que tinha na minha garganta, e este a corta ao sair. Mais um pouco de sangue...
– Oi? – falo com a voz rouca de dor.
– Oi! Tu voltaste! Falei que precisava de mim! – A voz dela ressoa pelo Abismo até meus ouvidos. Por que mesmo eu a coloquei ali? – Deixa eu te ajudar de novo!
Alguma voz em minha mente grita para eu parar, voltar para o meu lugar. Casa, onde estou segura. Tenho que ajudar minha amiga. Por que eu a deixaria para trás?
Abraço-me, com medo, como se estivesse fazendo algo errado. Minha pele está gelada, mas sinto meu interior queimar como lava. A ansiedade arranha minha coluna, minha barriga, meus pulmões.
Mais alguns passos falhos até o Abismo. Sinto-me à beira de um colapso. O precipício do desespero e solidão. Eu preciso dela. Mais que tudo.
Meus ombros pesados puxam meus braços e fazem com que estes peguem a corda ao lado da placa. PARA! POR FAVOR! TU SABES QUE NÃO É ASSIM! POR FAVOR! POR FAVOR, ME ESCUTA! Solto um grunhido e desabo.
– Tens que se livrar disso se quiser que eu volte.
– Eu sei... – gemo de dor.
– Então, faze. Sabe que vai te sentir melhor.
Ergo meu punho e bato na cabeça. Seco. Duro. O cérebro treme, apavorado. Mais um baque. Outro. E outro. Até que o crânio esteja pungindo, desfazendo-se como um teto de gesso velho.
Deixo os punhos caírem ao lado, na grama sedenta. Sangue negro pinga pelos cantos da boca, como uma baba podre, fétida. O cérebro está acordado, exausto. Os ossos rachando, uma bela obra de arte grega prestes a se esfacelar.
Jogo a corda pra baixo, monótona, paulatina, completamente consumida. A corda despenca pela escuridão do Abismo. Seguro com força, enquanto a sinto repuxar a corda lá embaixo. Ela começa a subir, com um vigor e uma selvageria animalesca.
As mãos cheias de anéis se agarram na grama amarela. Ela se ergue à minha frente. Por mais que estivesse estado no escuro por tanto tempo, está mais linda que eu. Os olhos vivos, um sorriso perfeito, o corpo robusto. Perfeita. Postura exemplar, o cabelo divino. Tão linda...
O meu reflexo nos olhos dela é decadente. Magra, cansada, olheiras, quase um cadáver. Olhos inchados de choro, boca negra, corpo destruído. Uma vergonha.
Ela me abraça com força e o sentimento de segurança me invade. Salva. Inspiro o cheiro de conformidade que ela exala. Que alívio...  Seu perfume me inebria com a sensação de estar viva, de ser amada.
– Tá melhor? – pergunta com os olhos brilhando.
O coração bate forte, um tsunami de sentimentos destruindo tudo dentro de mim. Grito de ódio.
– Não!
– Arranca.
– O quê? – Franzo o cenho, confusa.
– Arranca – repete apontando para meu peito.
A certeza que me envolve me apavora. Encaro minhas unhas limpas. A garota à minha frente me encoraja. Respiro fundo, fecho os olhos. Sinto um grito sendo arrancado do meu peito, ao mesmo tempo em que minhas unhas rasgam a pele. Elas cortam tecidos, sinto os ossos rangendo dentro de mim.
Continuo abrindo caminho até meu coração e o berro não diminui. Minha mente gira, uma montanha-russa sem fim. O ódio verte com o sangue negro. Agarro o órgão com força, aperto-o e puxo, golpe violento, concreto. Seco. Duro.
O ar volta para meus pulmões, e ela aperta o buraco no meu peito. Ele se cicatriza aos poucos, fechando-se dolorosamente. O cérebro ainda um pouco desconcertado, mas mais acordado que nunca, certo de que nunca mais voltará a dormir.
O coração brilha na minha mão. Livre. Finalmente. Ela pega o órgão da minha mão e o joga pelo Abismo. Observo apática, enquanto meus sentimentos caem pela escuridão. Não sinto. O pulsar não existe mais. A batida incessante que me invadia não existe mais. A inundação obstinada havia sido contida. Livre. Não sinto. Nada. Só o nada.
– Obrigada.
Ela sorri. Abraça-me. Nenhum tumtum para entrar em harmonia. Ela sou eu. Eu sou ela. Finalmente, mais uma vez.
Marina Solé Pagot – 18 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 15/11/2020
Código do texto: T7112183
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