Telas

- Não toque nas telas, Elisa disse, enquanto limpava os pincéis.

Eu sequer tinha pensado nisso. Mas após o aviso me afastei e fui até a janela.

Ela continuou com os pincéis, e quando terminou, colocou um avental ao redor do corpo, que ia da altura dos seios até pouco abaixo dos joelhos. Juntou as tintas sobre uma mesinha e ficou encarando a tela em branco que tinha deixado sobre o suporte.

Do lado de fora, dois gatos brigavam em cima do telhado do vizinho, fazendo um barulho que fez o meu estômago se revirar.

Elisa riscou a tela com um lápis e deixou um desenho como esboço, marcando algo que lhe veio na cabeça, mas que pra mim ainda não fazia muito sentido. Depois parou e acendeu um cigarro.

- O que foi? – Perguntei.

- Nada. – Ela respondeu laconicamente.

- Pelo jeito é algo mais do que nada.

- Achei que tinha algo em mente, mas agora não me parece bom o suficiente.

- Isso não existe.

- O que não existe?

- Bom o suficiente.

- Como assim?

- Ou é bom ou não é bom. Mas você tem que respeitar o seu momento. Tem dias que eu não consigo botar nada que preste no papel. Mesmo assim eu escrevo. Mesmo que seja pra apagar depois. A necessidade de se expressar não depende de valor estético.

- Mas eu não quero desperdiçar material com algo que vou jogar no lixo.

- Olhando por esse lado, faz sentido.

Ela fez um muxoxo, deu um trago no cigarro e começou a tirar o avental.

- Acho que vou beber algo. Você tá afim?

Concordei com a cabeça apenas e ela olhou a hora no celular.

- Vou comprar vinho num fiteiro aqui do lado. – Ela continuou.

- Vamos então.

Elisa vestiu uma blusinha, um short, contou algumas cédulas amassadas e colocou dentro do bolso.

Me vesti, segui atrás dela e tomamos a rua.

Era tarde da noite, mas segundo Elisa, esse fiteiro ficava aberto praticamente 24h por dia, com os vendedores se revezando. Infelizmente não havia um desses perto da minha casa.

Ela seguiu acelerada, andando um pouco a minha frente, e eu fui atrás, calado. Eu sabia que nesses momentos ela não estava pra conversa. Em geral, eu falava muito quando estava com outras pessoas, mas ao lado de Elisa eu tentava conter meu ímpeto. Ela era muito mais de silêncios e gestos do que de palavras. Enfim. Não sei o que ela fazia com um cara prolixo como eu. Mas cada um sabe a cruz que carrega.

Atravessamos uma avenida e chegamos ao fiteiro que ficava na calçada de uma praça.

Elisa parou na frente da barraca.

- Boa noite. – Ela disse.

- Boa noite. – O vendedor respondeu.

- Me vê uma carteira de Hollywood e duas garrafas de carreteiro. Elisa falou.

- Pra mim o senhor me vê quatro latões de Brahma. – Completei.

O vendedor pegou o cigarro na prateleira e foi até o freezer pegar as bebidas. Voltou com tudo dentro de uma sacola e entregou pra Elisa.

Eu tirei uma nota de cinquenta reais e entreguei pra o vendedor e ele se virou pra pegar o troco.

- Depois a gente acerta – Falei pra Elisa antes que ela reclamasse por eu estar pagando.

Peguei o troco com o vendedor, e a sacola com as bebidas e tomamos o caminho de volta.

Quando estávamos atravessando a avenida, um carro furou o sinal e passou bem perto de nos atropelar, então, perdeu o controle e acertou um poste. Corremos até a calçada e olhamos de longe o carro amassado contra o poste.

Então, a porta do carro abriu e uma mulher saiu de dentro, com o rosto todo ensanguentado. Ela estava visivelmente atordoada e tinha um cachorro nos braços. Dava pra ver que o animal estava morto, pois o pescoço dele pendia para baixo de forma obviamente não natural.

Elisa não conseguiu dizer nada. Só se abraçou a mim e começou a soluçar, como se tivesse à beira do choro.

Alguns passantes se aglomeraram ao redor da mulher tentando prestar socorro, e a sentaram na beira da calçada. Ela parecia não ter sofrido nada muito grave, apesar do impacto e de todo sangue.

- Vamos pra casa. – Falei.

Elisa enxugou o rosto com minha camisa e começou a se recompor.

- Podíamos ter morrido. – Elisa falou, ainda entre lágrimas.

- Verdade. Mas estamos bem. Vai ficar tudo bem. – Falei segurando a mão dela.

Elisa largou minha mão e partiu na frente, num passo alucinado. Olhei ainda para o carro que fumaçava de encontro ao poste, e para a mulher sentada com o cachorro no colo. Contei várias pessoas com o celular nas mãos ao redor dela. Alguns filmavam o carro, por pura morbidez. Outros faziam ligações. Talvez pedindo por socorro, ou só passando a notícia pra frente.

Elisa já ia longe quando me dei conta. Segui apressado atrás dela e quando cheguei a sua casa, o portão estava aberto. Ela estava sentada na beira do quintal fumando um cigarro.

Eu sabia que não adiantava falar nada.

Fechei o portão atrás de mim e entrei. Passei por ela, fui até a geladeira e guardei as bebidas. Tirei a roupa, ficando só de cueca e olhei para a tela em branco, cheia de riscos e formas incompreensíveis.

Elisa entrou logo depois. Tirou a roupa e foi para debaixo do chuveiro.

Eu acendi um incenso e abri uma cerveja. Quando ela saiu do banheiro, com uma toalha enrolada nos cabelos, eu estava bebendo, deitado na cama, recostado sobre dois travesseiros.

- Eu podia estar morta agora. – Ela falou... – Como aquele cachorro.

- Podíamos.

- Isso traz uma perspectiva diferente pras coisas.

- Como assim?

- Me deu a sensação de que estou perdendo tempo. E ao mesmo tempo de que o tempo é irrelevante.

- Dizem que o tempo é só uma ilusão das nossas consciências. E que os animais percebem o tempo de forma diferente da nossa. Alguns sequer percebem isso.

- É filosofia demais pra a minha cabeça. – Ela disse.

- Pra a minha também.

- Pensei que você gostasse de filosofia.

- Na verdade não. Gosto de saber que existem filósofos, mas não acho que eu me daria bem com um deles.

Elisa sorriu. Pela primeira vez na noite, se me recordo bem. E então se pôs a enxugar os cabelos.

- Quer o vinho agora? – Perguntei.

- Já está gelado? Carreteiro só presta se tiver quase pedrando.

- Eu sei. Coloquei no freezer já por isso. Não sei como você bebe essa porcaria.

- Pelo preço, meu bem.

- O preço não vale a ressaca. Quero acordar bem amanhã. – Falei andando até a cozinha.

Voltei com um copo cheio de vinho e lhe entreguei.

Ela pegou o copo nas mãos e tomou um gole antes de voltar a se concentrar nos cabelos.

Esvaziei minha cerveja e me deitei novamente.

Quando Elisa se deu por satisfeita, voltou-se para mim, com o copo de vinho pela metade. Estava completamente nua. Ela mantinha os pelos do corpo aparados, exceto por uma fina camada abaixo do monte de Vênus. Tinha uma tatuagem que circulava toda a coxa esquerda e outra que ia da altura das costelas até pouco abaixo do seio direito. Mantinha as unhas relativamente curtas e pintadas de preto, o que eu achava que combinava muito bem com ela e com seu ar sério.

Elisa se deitou por cima de mim e veio me beijando do peito até a boca, e se prendeu aos meus lábios com uma mordida. No meio do caminho eu já estava ereto. Ela me colocou pra dentro e começou a cavalgar lentamente sobre mim. Acelerou o ritmo aos poucos e apoiou as mãos sobre os meus ombros. Quando eu estava quase lá, ela levou as mãos ao meu pescoço e apertou, quase a ponto de me sufocar. Eu estava no jogo novamente. Então Elisa acelerou o passo e por fim se deixou cair sobre mim, justamente quando eu já não consegui mais me segurar. Ela fez tudo isso no tempo certo. Como se soubesse exatamente o que precisava fazer.

Ficamos abraçados por um bom tempo sem falar nada. Então ela se virou de lado e ficou olhando para o teto, com a respiração ofegante. Entrelaçamos os dedos das mãos e eu percebi que podia passar a noite inteira ali com ela. Talvez até mais do que isso.

Talvez fosse a intensidade dos momentos que tornavam o tempo relativo, da mesma forma que a gravidade distorce o tempo e o espaço. O tempo e o mundo do lado de fora paravam de fazer sentido. Não havia pressa, nem contas a pagar, nem violência, nem morte. Nada...

Percebi isso desde o começo, mas nunca tive coragem de dizê-la. Em geral verbalizar essas coisas só torna tudo mais complicado. Eu me dava por satisfeito por me sentir assim. Mesmo que sempre me questionasse se ela sentia o mesmo.

Adormeci no meio desse pensamento e quando acordei, já era de manhã.

Elisa não estava na cama, mas senti cheiro de café e da fumaça do cigarro dela. Quando me levantei, percebi que ela tinha passado a noite pintando e esvaziando as garrafas de vinho.

Havia uma tela secando sobre a cama. Elisa tinha pintado a mulher do acidente, ensanguentada com o cachorro no colo. A mulher tinha olhos enormes, quase desproporcionais. Os olhos mais tristes que eu já tinha visto. Já o cachorro parecia em paz.

Sobre o suporte percebi que ela estava pintando outra tela.

Nela havia um homem e uma mulher deitados numa cama de mãos dadas, olhando pra um relógio de parede, que parecia derreter.

Elisa voltou da cozinha com uma caneca de café nas mãos. Com o corpo todo salpicado de tinta.

Achei que aquilo tudo lhe caía bem.

Ela sorriu ao me ver acordado e tomou um gole do café.

- Fiz pra você também, tá na garrafa térmica – Ela disse.

- Vou voltar pra a cama. E você devia vir também.

Chovia do lado de fora e fazia um pouco de frio.

Elisa tirou o avental, soltou os cabelos e se enfiou debaixo das cobertas comigo. Estávamos indo bem, por enquanto.

Pelo menos enquanto o tempo nos permitia.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 12/11/2020
Código do texto: T7110253
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