314 - A Casa
Nasceram e morreram lírios não posso precisar em que primavera. Vieram, alvos, azuis vermelhos dar cor ao muro terroso, pedras e barro, portão leve de cana só para marcar o espaço, dizia o avô. A casa é de todos, nós só somos de quem se ama. Palavras difíceis, pensei na altura, quinze anos espigados, vestido de algodão, soquetes brancos nos pés com sapatos de fivela. Eu olhava e ele olhava. Deste lado era só para travar a monotonia, do outro, no muito aceso negro dos seus olhos, sentia uma mensagem nova das que ainda não sabia ler. Ele era discípulo do Velho Mendes e vinha pelas lições de álgebra. Espiava-os na mesa da sala, carvalho envernizado, austera como a casa inteira onde só livros e alguns retratos pintados mudavam a voz das paredes. E ele parecia escutar, aprendia, haveria de ter boa nota nos exames. Depois, veio visitar-nos sem motivo aparente. Estava forte, alto, rosto marcado de um tom de azul a dizer da barba rija escanhoada. Antes de ir, provavelmente por falta de palavras mais ousadas, piscou-me um olho e, já da estrada, mandou um beijo soprado a partir das pontas dos dedos. A Avó achou que era para todos e eu sabia que era só para mim. Voltei aos lírios, à colecção de cactos, aos canteiros de violetas que aromatizavam as mãos que as descobriam entre o verde escuro das folhas. Depois chegou para mim a carta. Adivinhei de quem era, adivinhei a conversa, escondi-me para dizer que sim e um dia, já casada, com uma criança na mama e a outra a começar a falar, descarregamos as nossas coisas na casa que foi dos meus avós. E tudo se misturou em mim. Eram tempos novos e ainda os velhos, era um espaço diferente mas ainda com os retratos dos ilustres da família. – Não, não mexas no muro nem no portão. Por causa dos lírios, porque, como sabes, a nossa casa é de todos.