Apoéticas-1
Apoéticas 1
Quem contava sobre ela era minha avó, aproveitando aquelas noites longas de fogão de lenha e neve lá fora. E contava como se fosse uma lenda que já vinha lá dos tempos mais antigos, quando princesas e príncipes faziam parte das histórias, e as lendas nasciam dos pequenos gestos mágicos de quem as contava.
A Vó sempre dizia como ela era bela, primeiro. E só depois contava sobre como ela deslumbrava a quem a via, por causa daquele jeitinho tão seu, tão frágil, de ser especial. É que ela mostrava-se única, e sobressaía entre todas as outras. ”-E olhem que eram uma multidão que a rodeava!” apontava Vó, não querendo que isso passasse despercebido.
Mas depois, logo acrescentava que todas eram só um pouquinho menos sublimes que ela, apesar de serem lindas… Claro que assim, dizia, ela ia ganhando aos poucos, cada vez mais, a fama de ser maravilhosa.
E era, sim. Era única e bela, e enchia os olhares de todos com esperanças até então adormecidas. Dava mais cor ao dia de quem nela punha os olhos, e se perdia de amores. E ninguém resistia a esse seu encanto.
E era só quando chegava a este ponto que Vó contava o resto. Parecia quase uma explicação que nascia assim, das nuances semínimas da sua voz tranquila - voz de Vó, voz de contadora de histórias.
Ela dizia que o destino tinha interferido, e eu acreditava. Devia ser verdade, posto que o destino sempre interferia nas histórias de Vó, e naquela não ia ser diferente.
Por isso, quando Vó continuava a história e contava que já era do destino daquela beldade ser assim, tão bela e tão especial, por isso ninguém estranhava. Menos ainda estranhávamos quando ela acrescentava que, porque isso já estava no seu destino antigo, acabou acontecendo que a bela tinha sido amada como nenhuma outra.
Claro que Vó sempre tentava encontrar algum tipo de conclusão, ou de moral, na história. Por isso comentava o excesso desse amor.
“-Era amor demais!” -dizia. “-Tudo o resto, todos os outros, ficava num segundo plano, um pouco distante e ofuscado pelo brilho desse sentimento entre a bela e o seu par!”
Vó explicava que, à sua maneira, ele também era muito bonito. Forte e incisivo rodeava-a a bela de atenções, defendendo-a dos perigos circundantes. Era mais agressivo que ela, mas discreto e tenaz na sua forma de sempre estar perto.
Eram inseparáveis, duma forma tão conhecida e tão perfeita, que acabou gerando invejas e ciúmes, como é costume acontecer nas histórias dos grandes amores, quando são por demais conhecidos e perfeitos.
“-E foi por isso- dizia Vó de dedo empinado- que o destino interveio. Tamanho amor não podia ficar assim, só em felicidade. É que quase sempre o amor precisa de algumas contrariedades para ser apreciado!” - insistia ela.
E foi por isso que um poderoso feiticeiro que vivia do outro lado do reino, se zangou com os dois e desistiu de tomar para si a bela. Cansado de tentar abraçá-la, mas sempre impedido pelo seu par, o feiticeiro lançou sobre os dois uma maldição terrível, que fazia com que sempre estivessem próximos pelo amor, mas que nunca chegassem realmente a estar juntos.
Quem escutava Vó, principalmente as crianças como eu era então, arregalavam muito os olhos quando ela falava assim de feiticeiros e maldições. Mas mesmo os adultos ficavam todos de respiração suspensa, revoltados com tanta maldade. A tensão na velha cozinha crescia até atingir um ponto quase insuportável.
E então Vó, em voz mais doce que nunca, explicava que estava apenas contando mais uma história, e que ninguém precisava sofrer com isso.
Na primeira vez, apesar de ser muito menino ainda, lembro que alguém perguntou: “- Vózinha… Essa história é verdadeira?”. E logo ela respondeu muito lentamente:
-Claro que sim. É a história da rosa e do espinho, que não podem viver um sem o outro, mas que nunca chegam a estar juntos. - E a mão de Vó, distraindo-nos do seu sorriso, apontava para as rosas na jarra sobre a mesa da sala, acompanhada por todos os nossos olhares.