A Vizinhança - II
Amanheceu na casa de Rui e a correria começou. A mesa era bonita de se ver pela manhã, apesar do barulho dos meninos, era uma família rica em amor. Mafalda se desdobrava para atender a todos os pedidos, aos choros dos pequenos, sempre armada com um pano e um spray de álcool gel na mão. Ela havia desenvolvido uma pseudosíndrome do Transtorno Obsessivo Compulsivo por limpeza, era como ela gostava de chamar o hábito que adquiriu de alertar a família para a importância de manter as regras de prevenção contra o vírus, e elas estavam bem expressas em um papel impresso e pendurado no hall de entrada, que assim dizia:
• Lavar as mãos frequentemente por 20 segundos com água e sabão;
• Evitar tocar nariz e boca;
• Cobrir o nariz e a boca com um lenço ou o cotovelo ao tossir e espirrar;
• Manter as unhas cortadas;
• Higienizar objetos pessoais (óculos, telemóvel, relógios, etc.) com álcool gel;
• NUNCA, NUNCA SAIR SEM LEVAR MÀSCARAS E LUVAS!
Na verdade, o mini cartaz era mais uma proforma, pois a prática ditada por Mafalda era bem mais rígida, ninguém saia de casa sem a autorização e vistoria completa feitas por ela. Por esta razão, os únicos que ainda conseguiam sair era o Rui, que precisava fazer as compras para casa uma vez por semana e Filipe, que fazia parte de um grupo de jovens da igreja da freguesia. Eles prestavam serviço às pessoas mais idosas e de grupo de risco que não podiam sair de casa.
Aliás, tanto Rui quanto Filipe já estavam a se preparar para sair. Filipe saiu primeiro, precisa chegar cedo à igreja para resolverem os itinerários do dia. Ele pegou uma sandes e saiu às pressas, sob os protestos e a inspeção da mãe. Na igreja, ele soube que iria trabalhar na sua vizinhança, ficou contente pois conhecia quase todos os vizinhos. Então partiram em grupos. De volta a sua rua, ele foi
deixar os panfletos no prédio em frente ao seu, juntamente com uma amiga, Ana. Eles entraram e começaram a distribuição, afixavam no quadro de aviso e colocavam por debaixo das portas. Ana foi para o segundo andar e Filipe ficou no primeiro. Ele parou em frente ao apartamento de Dona Ribeiro e tocou a ampainha, o rapaz não soube do ocorrido na noite anterior, a mãe não quis que os filhos soubessem que uma pessoa conhecida deles estava muito doente ou mesmo pior por causa do vírus. Ele tocou novamente a campainha, mas ninguém atendeu. Então, ele resolveu colocar o panfleto por baixo da porta e assim fez, mas o papel foi enviado de volta pelo mesmo caminho, ele achou estranho e o enfiou novamente por baixo da porta e de novo o teve de volta, agora Filipe riu com um ar de espanto e chamou pela senhora:
_ Dona Ribeiro, Sou eu, Filipe. Vim saber se a senhora precisa de alguma coisa! Indagou o rapaz.
_ Não quero nada! Vá embora! Falou alguém de forma ríspida. Ele achou estranho, tal resposta vinda de uma senhora tão simpática como Dona Ribeiro, mas imaginou que deveria ser o estresse da quarentena. Agachou-se e pôs o papel outra vez pelo vão da porta, que dessa vez não voltou mais, ele sorriu e continuou a sua peregrinação pelos andares.
Em casa, Rui foi ajudar a esposa a dar banha nos gêmeos, missão trabalhosa e demorada, porém divertida. No quarto, João buscava alguma live fixe na internet para se distrair. Depois de quase duas horas entre banhar e vestir os miúdos, eles terminaram e Rui pôde preparar-se para ir às compras. O supermercado era distante trezentos metros da casa, percurso que Rui fazia a pé. Nessas últimas
semanas, ir ao supermercado era para ele sinônimo de liberdade, nuca havia sentido tanto prazer em ouvir a mulher dizer que ele precisava ir às compras. Fazia o caminho a passos curtos, sem pressa de ir ou vir, olhava os jardins cuidados com esmero, os prédios, a praceta com minuciosidade; descobriu um cenário novo dentro daquele velho quadro, visto aos relances por de trás dos vidros do carro há tantos anos; nos jardins ouviu o canto dos pássaros e pensou: "como alguém consegue manter os animais presos em gaiolas? Nós humanos estamos a enlouquecer só de ficarmos confinados em casa! E as pobres pessoas que estão enfermas, sozinhas, sem poderem receber a visita de seus parentes? Triste!
Benditos sejam os profissionais de saúde que hoje são nossos bravos soldados a lutar nessa guerra invisível". Depois desta caminha contemplativa e reflexiva, ele chegou as proximidades do supermercado e viu que a fila, por sorte, estava pequena, somente quatro pessoas, pôs-se a dois metros da última e aguardou a sua vez de entrar.
Já dentro do estabelecimento comercial, Rui seguiu para as frutas, colocou laranjas, limões, maçãs e tantas outras coisas que a esposa pedira; depois lembrou que não poderia esquecer da lixivia, repetidas vezes lembrada por Mafalda. Atravessou, então, para o corredor de materiais de limpeza, estava a uma ponta do corredor, quando percebeu no outo lado ao fundo uma senhora conhecida, era a
Dona Ribeiro! "Mas como pode?" Pensou ele. E sem entender, decidiu chamá-la:
_ Dona Ribeiro?, a mulher olhou para ele, mas não disse nada, virou de costa e foi-se embora. Rui ficou ainda mais sem entende a situação, mas pensou que talvez a vizinha não estivesse tão mal como ele pensava ou, se calhar, ele a confundira com outra pessoa, afinal as máscaras escondem parte do rosto. Mas a semelhança era grande demais, mesmo com máscara, Dona Ribeiro era de um tipo físico
robusto, fácil de reconhecer, com alvos cabelos brancos em caracóis, parecia um anjo meiguiceiro na terra.
Enquanto isso, Filipe e Ana haviam terminado de distribuir os panfletos e já somavam algumas listas de compra para fazer a seguir ao almoço.
_ Estou bué cansado e cheio de fome! Exclamou Filipe ao passar a mão sobre a barriga.
_ Eu também. Hoje tivemos bué pedidos de supermercado e farmácia. Temos que nos apressar para darmos contar de tudo isso ainda hoje!
_ Tens razão, Ana! Encontro vocês aqui, depois do almoço. Adeus!_ Até mais, Filipe!
Filipe queria convidar Ana para almoçar em sua casa, mas não podia, eram normas para evitar possíveis contágios. Os dois despediram-se e ela seguiu de volta com o restante do grupo.
Ana não demorou a chegar à casa, também morava perto da igreja. Foi direto para o banho, não poderia descuidar, tinha a avó hospedada. Avó e neta eram muito carinhosas uma com a outra, mas durante os dias de quarentena, não podiam abraçar e dar os beijinhos de sempre, ao contrário, falavam-se de longe e sempre de máscara, por causa do serviço de auxílio que prestava para as pessoas do grupo de risco. As duas evitavam estar próximas uma da outra e se falavam por vídeo conferência, uma novidade para Dona Inês, que prometeu continuar a usar quando voltasse para sua casa.
Nunca uma palavra fez tanto sentindo para uma pessoa como fez a palavra windows para Dona Inês. Em verdade, descobrir a web foi para ela um abrir de janelas e portas para um mundo fascinante. Tão rápida foi sua integração às redes sociais, que parecia já conhecê-las há muito. Foi ao olhar uma bela foto no Instagram que ela lembrou de um poemeto giro da amiga, Poetisa, era como chamava Dona Ribeiro. Inês escreveu o poema como legenda daquela imagem de um lindo girassol, iluminado pelo sol. O poema dizia assim:
"Gira o sol
Que gira-mundo!
giro!
gira o girassol
feliz!
a banhar-se na luz
que alumia o mundo,
nos mornos rastros
rasteiros
do gira-mundo"