Virada

Jana se sentou a beira do balcão e fez um sinal com a mão. Ruth veio até ela e sorriu, como se ela tivesse sido a primeira boa notícia do dia.

- Oi Jana. Quer alguma coisa do bar?

- Uma cerveja. 600ml. Um copo apenas.

- Sozinha hoje?

- Por enquanto.

Ruth se afastou e voltou com o pedido. Encheu o copo dela, tirou um cigarro de trás da orelha e acendeu.

- Você nunca mais apareceu por aqui.

- É. Estava resolvendo uns negócios.

- E resolveu?

- Mais ou menos.

Ruth deu uma tragada, se esticou até a prateleira e pegou uma garrafa de aguardente e dois pequenos copos de doses. Encheu os dois e ofereceu um para Jana.

- Por conta da casa.

- Obrigada, meu mel. – Jana respondeu. Ruth novamente não conseguiu conter o sorriso.

- Não é nada. – Ruth disse antes de virar o seu copo.

Jana fez a mesma coisa e depois bebeu um pouco de cerveja pra disfarçar o gosto da cachaça.

- Como você está, Ruth? – Perguntou.

- Não ando muito bem. Acabei meu relacionamento.

- O que aconteceu?

- Sei lá. Acho que ela esperava muito de mim. Mais do que eu podia dar, saca? Eu achei que essa ia ser pra ficar. Mas acho que eu sou muito babaca pra ficar com alguém por muito tempo. E ela não tinha amor próprio o suficiente pra perceber isso.

- Pesado. Sinto muito.

- Tudo bem. – Ruth respondeu, dando uma última tragada no cigarro.

Nesse momento um homem se aproximou das duas no balcão. Ele parecia cansado. Tinha olheiras bem aparentes. Estava vestido de preto e tinha uma barba mal crescida e mal aparada.

- Ruth. Quanto está a garrafa do Bacardi?

- De rum, só tem Montilla, Romeo.

- Porra. Quanto tá?

- Pra você eu faço por 35. A garrafa tá quase cheia. Quer?

- Bota pra mim. Me arruma água com gás e suco de maracujá também.

- Por que você não toma com coca cola como qualquer ser humano normal?

- Não bebo refrigerante, esqueceu?

- É mesmo. Esqueci que tu era um fresco.

O homem sorriu e Ruth se desencostou do balcão pra procurar o pedido. Mas antes de se afastar apontou para Jana e falou.

- Essa aqui é Jana. Uma amiga das antigas. – Depois apontou pra o homem e falou. – E esse aqui é Romeo. Cuidado que ele é cheio das palas. Coisa de escritor.

Jana sorriu e tomou um gole de cerveja, mas não disse nada.

- Vou tomar como um elogio, Ruth. Mas esse tempo já passou. – Ele disse.

Ruth se afastou e desapareceu atrás das cortinas do bar.

- O que você escreve? – Jana perguntou, sem tirar os olhos do copo de cerveja.

- Contos. Às vezes poesia. Um dia espero escrever um romance.

- E por que não escreveu ainda?

- Me falta muita coisa.

- Tipo o que?

- Acho que me falta a capacidade de me comprometer com uma ideia.

- E como seria isso?

- Um romance é uma ideia. Uma ideia muito bem desenvolvida. Sem pontas soltas. Tem que fluir. Tem que ser completo.

- E o que você escreve não é assim?

- De forma alguma. Acho que trabalho bem melhor com os fragmentos do que com o todo.

- Entendi agora.

- E você. Com o que você trabalha?

- Trabalho com pessoas.

- Não é algo muito específico.

- Podemos deixar assim por enquanto.

Jana esvaziou o copo de cerveja e voltou a enchê-lo.

Ruth voltou logo em seguida com o pedido.

- Vou me sentar ali. – Romeo apontou pra uma mesa junto à parede e distante do palco. – Preciso de um pouco de silêncio hoje.

- Tá certo.

- Jana. Foi bom conversar com você. – Romeu disse se despedindo.

Jana cumprimentou com a cabeça e o observou ir embora.

Romeo e Ruth arrumaram as bebidas sobre a mesa e ele se sentou sozinho, depois tirou um notebook da mochila e se pôs a escrever.

Ruth voltou e se sentou bem ao lado de Jana.

- Que tipo de pessoa vem pra um puteiro pra escrever? – Jana perguntou.

- Ele não é lá muito normal. Mas é boa gente. Costuma me ouvir quando estou na fossa. O que tem sido muito comum ultimamente.

- Não gosto de te ver assim. Essa melancolia toda não combina com você.

- E o que combina comigo, Jana? Sinceramente. É complicado ser consistente quando se tem múltiplas personalidades. Hoje eu posso estar sorrindo, mas o amanhã é outra história. O meu normal é oscilar. Você já devia saber disso.

- É. Mas eu acho que nunca te vi assim tão pra baixo.

- É que o golpe foi grande. No fim das contas eu acho que nasci pra ser sozinha. Tenho que me acostumar com isso.

Jana se aproximou de Ruth e deu um beijo de leve nos lábios dela, depois sussurrou.

- Eu estou aqui agora.

- Até quando?

- Sem previsão.

Ruth deu um sorriso e se levantou.

- Preciso trabalhar agora.

- Tudo bem. Vai lá.

Ruth voltou pra detrás do balcão e Jana ficou sozinha, encarando novamente a sua cerveja. Tomou mais duas garrafas antes que o bar começasse a encher.

Um homem se aproximou de sua mesa e abriu um sorriso.

- Posso tomar uma com você, meu bem?

- Não – Jana respondeu olhando diretamente nos olhos dele.

- Qual foi, moça? Tá de mau humor?

- Você não vai gostar de descobrir.

O homem se encostou no balcão e ficou a encarando. Ele mordeu os lábios e sorriu de uma forma que causou asco em Jana.

- Melhor você deixar ela quieta, Luiz. – Ruth falou, à distância, enquanto limpava uma garrafa de Uísque com uma flanela.

- E é? Por quê?

- Capaz dela te dar uma indigestão. Vai cantar em outra freguesia, vá.

Luiz cuspiu no chão, se afastou e sentou-se em outra mesa. Sozinho.

Ruth trouxe outra cerveja para Jana e se encostou novamente no balcão.

- Quem é esse otário? – Jana perguntou.

- É um babaca aqui da região. Fazendeiro. Vive arrumando confusão.

- Que tipo de confusão?

- Semana passada ele espancou uma prostituta aqui do bar.

Jogou ela do carro, no estacionamento. E ainda tentou atropelar um travesti que foi socorrer a menina.

- E não fizeram nada?

- Ele pagou pelo prejuízo. Deu uma grana pra a menina ficar na dela. Além do mais ele é amigo do prefeito. Você sabe como essas coisas funcionam.

- É mesmo?

- Estou falando sério Jana. Melhor ficar longe desse tipo.

- Tá certo, Ruth. Não precisa falar duas vezes.

Ruth voltou ao serviço e Jana seguiu bebendo.

Em certo ponto da noite, Luiz retornou a sua mesa, visivelmente embriagado.

- E ai? – Ele perguntou, puxando uma cadeira pra se sentar bem de frente a ela.

Jana não respondeu.

- Quanto você quer pra passar a noite comigo? Qual o seu preço?

- Acho melhor você se levantar da minha mesa. – Jana respondeu olhando diretamente nos olhos de Luiz.

- Ah. Adoro mulheres como você. São as melhores. As mais ariscas sempre ficam bem mansinhas depois de uns tapas.

- Você acha que é o meu caso?

- Tenho certeza. – Luiz falou, passando a língua sobre os lábios.

- Já que você falou algo sobre mim, eu vou falar algo que acho sobre você, tá certo?

- Já estou até curioso. Pode falar.

- Você é do tipo de homem que precisa bater numa mulher pra se sentir excitado. Se não for assim o seu pau não funciona. Acho até que é algo que vem desde sua adolescência. Você apanhava muito, não é? Talvez de um primo, ou de algum amigo mais velho... estou certa?

Luiz deu um tapa na mesa e ficou de pé.

- Cale a boca, sua puta. Quem você acha que é?

- Pelo jeito acho que acertei em cheio. Você só quer fazer com os outros o que fizeram com você não é? É de dar pena.

- Eu vou encher sua cara de porrada se você não calar a boca.

- Você pode tentar. Mas acho que vai se arrepender.

Os dois ficaram se encarando, até que Luiz perdeu o controle e virou a mesa no chão. As garrafas e copos se espalharam e se espatifaram por todo o salão. Nesse momento, a música parou e todos ficaram observando.

Jana se levantou da cadeira, com o copo nas mãos. Depois levantou a camisa levemente, expondo uma pistola presa num coldre.

- Acho melhor você pagar o prejuízo e ir embora. Antes que eu meta uma bala em você. Ou pior. Te bote pra passar a noite no presídio com uns detentos que vão amar a sua história. Você tem uma bundinha até bem interessante. Vai ter muita gente disputando pra ficar na sua cela.

Luiz dirigiu um olhar assustado para Jana e foi embora sem dizer nada.

- Se eu te encontrar por aqui de novo, não vai ser bom pra você viu? – Jana falou ainda, antes que ele estivesse longe demais pra ouvir.

Ruth saltou o balcão e começou a apanhar os cacos de vidro do chão.

- Quer ajuda, meu bem? – Jana perguntou.

- Não precisa. Vou arrumar outra mesa pra você.

- Deixa isso pra lá. Que horas você larga?

- Às quatro e meia.

Jana abriu a carteira e esticou uma nota de 100 reais para Ruth.

- Pelas cervejas.

- Aqui tem muito mais do que a sua conta.

- É pra o seu Uber. Estou nesse hotel. – Jana falou entregando também um cartão de visitas.

Ruth deu um sorriso e guardou o dinheiro no bolso.

- Assim que eu largar eu te mando uma mensagem.

- Vou botar um vinho no gelo e encher a banheira. Não demora.

Jana deu um beijo nos lábios de Ruth e andou em direção à saída.

Subiu em sua moto, colocou um capacete, e desapareceu no meio da noite, entre as luzes e sombras da estrada.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 04/11/2020
Código do texto: T7103833
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