Providência

- Preciso de carne. – Lígia falou, esticando-se no sofá.

- Comemos carne ontem – Marcos respondeu, enquanto fingia assistir o jornal na TV.

- Mas eu preciso de carne agora. – Lígia continuou.

- Estou pouco me fudendo pra isso. Foi você que gastou o dinheiro todo com cigarro de manhã.

- De manhã parecia uma boa ideia.

- É sempre assim.

- O que você quer que eu faça? É um vício.

- Gostaria que você parasse de reclamar.

Lígia ficou de pés em cima do sofá jogou o cinzeiro na direção dele. Errou por muito pouco.

- Você é mesmo um estúpido. Bem que minha mãe me disse. Não sei por que fui inventar de me casar contigo.

- Você devia ter dado ouvidos a ela. Talvez fosse mais feliz assim.

Lígia saltou do sofá, correu até a janela e meteu a cabeça pro lado de fora.

Chovia copiosamente.

Na marquise à beira da janela, um casal de pombos se encolhia contra a parede para fugir da chuva. Lígia se esticou, quase caindo no processo e agarrou um deles.

Olhou triunfante pra Marcos e exibiu o bicho.

- Consegui carne.

- Pombos transmitem doenças. – Marcos falou, quase sem acreditar no que estava vendo.

- Pessoas também.

- Eu não vou comer essa porcaria.

- Ótimo. Sobra mais pra mim. – Ela disse, tentando conter o bicho nas mãos.

Lígia foi com o pombo até a cozinha e Marcos desligou a TV.

A chuva entrava na sala pela janela que Lígia tinha deixado aberta e ele foi lá e a fechou.

Resolveu ir até a cozinha pegar uma cerveja e encontrou Lígia encarando o pombo, preso entre as mãos.

- Como faço pra matá-lo? – Ela perguntou com a voz trêmula.

- Passa uma faca no pescoço, como fazem com as galinhas.

- Eu não tenho coragem.

- Então solte o coitado.

- Não! Mata ele pra mim?

- Você teve coragem de meter uma faca em mim, mas não tem coragem de matar um pombo?

- Você fez por merecer, ele não.

- Então se vire. – Marcos disse, contrariado.

Ele abriu a geladeira, pegou uma cerveja e voltou pra a sala.

Minutos depois Lígia apareceu na sua frente, lívida e com as mãos ensanguentadas. Ela correu até o banheiro, lavou as mãos e o rosto e voltou para a cozinha sem dizer nada.

Marcos colocou Jazz pra tocar na vitrola e se sentou no sofá, se sentindo realmente bem. Não tinha ganho na loteria. Estava desempregado. As contas a pagar iam se acumulando. O país continuava afogado em crises econômicas e corrupção. Pessoas morriam de fome nas ruas e nas favelas. Seu time estava à beira do rebaixamento. Mas a cerveja ainda descia bem. E havia o suficiente pra alguns dias. Ligia, apesar do temperamento e da personalidade quase limítrofe, era uma boa mulher. Melhor do que ele, provavelmente. Não havia do que reclamar.

Deus provê aos que têm fé. – Sua avó dizia sempre.

Marcos não tinha fé alguma. Mas quem era ele pra questionar a sabedoria da velha?

Enquanto esvaziava a lata de cerveja, Marcos pôde sentir o cheiro de refogado vindo da cozinha. Foi até a geladeira novamente e viu Lígia fritando o pombo numa frigideira. Ela tinha jeito na beira de um fogão. Parecia uma rainha. Orgulhosa. Mesmo vestindo roupas manchadas e cheias de buracos de cinzas de cigarro.

Marcos deu um beijo atrás do pescoço dela e a abraçou por trás.

- Você não vai comer nenhum pedaço – Ela disse, visivelmente irritada.

- Tudo bem meu amor. Não faço questão.

- Não me chame de meu amor. Você não me ama de verdade.

Marcos se afastou e se sentou no balcão da pia.

- Claro que amo. Jurei amá-la para sempre, não foi? Com Deus por testemunha.

- Você não acredita em Deus, Marcos.

- Tá. Com um padre por testemunha...

- Você sabia que Padre Arnaldo faleceu?

- O que nos casou? Sério? Não sabia.

- Pois é. Faleceu. Covid, eu acho... Que Deus o tenha.

- Que a terra lhe seja leve. – Marcos falou, abrindo mais uma lata de cerveja.

Lígia lhe dirigiu um olhar fulminante e ele resolveu que o melhor era ficar calado.

Depois de assar o pombo, ela encheu um prato com arroz, algumas verduras e juntou uns pedaços o bicho.

Marcos ficou assistindo, enquanto ela preparava tudo. Não disse mais nenhuma palavra. Os dois foram para a sala e Lígia provou o arroz e as verduras e depois levou um pedaço do pombo à boca com um garfo.

Mastigou e falou com um sorriso amarelo.

- Tem gosto de Galinha.

Marcos riu.

- Deve ser.

Lígia comeu tudo sozinha e depois tomou uns goles de cerveja pra finalizar.

Marcos adormeceu no sofá depois de mais algumas latas, com um rádio ao pé do ouvido, narrando mais uma derrota do seu time. Acordou horas depois, com o barulho de Lígia correndo para o banheiro para vomitar. Ela passou boa parte da noite indo e vindo da cama para o vaso sanitário. Até que não tivesse mais nada para botar pra fora. Ficou assim por dois dias.

Marcos já estava preocupado e sugeriu que fossem ao médico. Lígia negou prontamente, e na manhã do terceiro dia ela juntou alguns trocados, o acordou e falou.

- Vou à farmácia.

Marcos concordou e voltou a dormir. Quando acordou novamente encontrou Lígia chorando no banheiro, desesperada.

- O que foi, meu amor? – Ele perguntou, consternado.

Ela esticou o braço e mostrou a ele o motivo de suas lágrimas.

Era o resultado de um exame de gravidez. Positivo. Pelo que ele conseguiu interpretar, das marcas azuis sobre o fundo branco.

Abraçaram-se e choraram, talvez por motivos diferentes... Precisariam de mais do que fé agora. Mas ele estava disposto a acreditar novamente, que enfim, tudo poderia ser diferente.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 02/11/2020
Código do texto: T7102473
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.